Edifício Gagarine

Filme francês Edifício Gagarine aposta em crítica social com ares de ficção científica*

Em 1963, o astronauta russo Yuri Gagarin – já famoso depois do feito de ter sido o primeiro ser humano a completar uma viagem espacial – esteve na França e participou da inauguração do complexo residencial nos arredores de Paris que ganhou o seu nome. A Cité Gagarine, como foi chamada, acolhia principalmente a classe trabalhadora ligada ao partido comunista francês, mas após um período de decadência, acabou se tornando um local ocupado pelos muitos imigrantes que fixaram residência na França.

É nesse lugar, agora nos dias atuais, que se passa Edifício Gagarine, longa de estreia da dupla de diretores Fanny Liatard e Jérémy Trouilh. O filme, na realidade, é uma ampliação do curta-metragem que eles já haviam lançado anteriormente. Mas o ponto central continua o mesmo: evidenciar a questão habitacional na periferia parisiense, especialmente a partir da realidade desses imigrantes, agora com seus filhos e netos já arraigados em solo francês.

Para complicar a situação, o governo da França decide demolir o complexo por conta da insalubridade do local e da má conservação do espaço físico do complexo. Todos precisam sair dali e serem realocados em outras habitações. Essa demolição de fato aconteceu entre 2019 e 2020, e os diretores conseguiram realizar as filmagens nesse momento, nos últimos suspiros das antigas instalações.

O filme possui, portanto, um tom de realismo social bastante entranhado na sua narrativa. No entanto, é menos aguerrido em termos de crítica social direta como pode parecer em primeiro momento – trata-se de obra bastante diferente de Os Miseráveis, para ficar em um exemplo recente, longa de Ladj Ly que também retrata a vida na periferia parisiense, de maioria negra e de imigrantes africanos ou de países do Oriente Médio, esse sim com um tom bem mais politizado.

Já em Edifício Gagarine, as questões sociais estão lá presentes, mas o filme acrescenta uma série de outras camadas na trama. Quem guia a nossa jornada nesse momento crítico para todos os habitantes do complexo é o jovem Youri (Alseni Bathily) que, vejam só, sonha em ser astronauta, espelhado no famoso Yuri Gagarin.

A mãe ausente promete um dia levá-lo embora dali, mas tenta reconstruir uma nova família com outro marido em outro lugar; seu pai já é morto. Youri passa os dias mexendo com equipamentos eletrônicos, fazendo uma série de reparos técnicos no prédio e exercitando seu lado astronauta-cientista na companhia dos amigos Diana (Lyna Khoudri) e Houssam (Jamil McCraven).

No espaço

Na medida em que a trama decorre e o conjunto habitacional começa a ser esvaziado para dar início a sua demolição, percebemos o quanto Youri é um personagem solitário e carente de afeto. Além disso, recai sobre ele um sonho antigo que parece bem difícil de ser alcançado para alguém na sua condição socioeconômica: o de se tornar astronauta.

Há um esforço pessoal do garoto nesse sentido porque ele tem um talento nato e autodidata para as ciências e para a eletrônica, conseguindo o grande feito de construir, em meio aos escombros do prédio, uma estufa que faz as vezes de moradia onde se respira um pouco de vida – a vida que ele deseja viver –, enquanto tudo ao redor parece desabar.

Ainda assim é bonito ver o filme dar vazão a esse desejo na medida em que a ficção científica encontra a fantasia e, com isso, faz-se um afago nos personagens, gesto muito diferente (e repetido em muitos filmes) daquele de só reforçar a opressão e o sofrimento dos mais esquecidos pela sociedade. A maior virtude do filme é fazer isso sem ignorar a dura realidade e o peso da existência daqueles personagens em tal contexto.

Isso faz de Edifício Gagarine um filme muito amoroso com os personagens (com Youri, especialmente), com uma pitada de condescendência, mas nem por isso alienado das questões sociais que os envolvem. Cabem vários enredos ali dentro, um equilíbrio muito difícil entre o filme de formação, os dramas de uma família ausente – e a consequente necessidade de se construir outra família por meio de laços diferentes –, e principalmente a fábula sci-fi que parece ser a única salvação para quem queria apenas por alguns momentos se perder no espaço sideral.

Edifício Gagarine (Gagarine, França, 2020)
Direção: Fanny Liatard e Jérémy Trouilh
Roteiro: Fanny Liatard, Jérémy Trouilh e Benjamin Charbit

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 28/09/2021)

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