51º Festival de Brasília: Ilha

Parece que foi muito rápida a chegada de Ilha, o mais novo filme da dupla de diretores de Café com Canela que, ano passado, no mesmo Festival de Brasília, causou sensação e estremeceu alguns alicerces com esse singelo filme embebido de Recôncavo como eu gosto de falar. Mas Glenda Nicácio e Ary Rosa percorreram um longo caminho para chegar aqui e realizar esse feito: o ter dois longas-metragens, gestados e realizados no interior da Bahia, competindo em dois anos consecutivos num dos mais importantes festivais de cinema do Brasil.

Ilha, na verdade, começou a ser rodado durante o Festival de Brasília do ano anterior. Isso sugere que o filme já estava sendo gestado muito antes da repercussão tão positiva de Café com Canela em Brasília. O resultado é dos mais interessantes porque o novo filme segue caminhos muito diferentes e arriscados. Para começar, é metalinguístico: narra a história de Emerson (Renan Motta), jovem morador de uma ilha no sul da Bahia, que sequestra o renomado cineasta Henrique (Aldri Anunciação) para que ele faça um filme sobre a vida do jovem no local.

A partir do instante em que Henrique cede e aceita o desafio de fazer o trabalho, Ilha inicia um artifício de construção narrativa em que o filme dentro do filme se conecta muito bem com as questões que brotam a partir da vivência dos dois, e daquilo que aprendemos também das angústias pessoais de cada um, especialmente de Emerson – conheceremos aqui a sua biografia. E há ainda todo o sabor de ver a gênese de um filme “produzido” e rodado em um ambiente como aquele, distante de tudo; vai  dos testes de elenco com os próprios moradores locais até as filmagens em si, somando todos os seus percalços e as diferenças de abordagem de Henrique e seu conhecimento formal e os gostos pessoais de Emerson.

Ao lado do filme anterior, Ilha demonstra toda a ousadia da dupla de diretores. “O que o cinema quer da gente é coragem”, diz Emerson no filme, frase repetida por Glenda no palco do Cine Brasília para apresentar o longa. Munidos desse ímpeto corajoso é que os jovens realizadores deram a cara a tapa – quando podia ser muito confortável repetir os mesmos passos de Café – e fazem de Ilha mais uma forte experiência a ampliar o sentido do afeto, do lugar de representação, da forma como a violência está presente nas nossas relações cotidianas e do esforço pessoal que é preciso fazer para que a(s) história(s) de cada um possam reverberar no cinema.

Os paralelos com Café com Canela são inevitáveis porque o primeiro longa e seus riscos assumidos nos chegaram há apenas um ano e só há poucos meses o filme ganhou lançamento comercial nos cinemas. Ele ainda reverbera. Já Ilha nos leva para outros lugares, ainda que estejam lá o retrato de uma vida interiorana e sua cultura peculiar, os laços de afetividade que se busca construir para resistir à dura vida local, o retrato de uma Bahia longe do cartão postal.

Mas é inegável que existe aqui uma energia diferente, por que muito masculina, uma dureza a se revelar já na primeira cena do filme: um sequestro, uma arma na cabeça e a insistência incansável de Emerson para que Henrique faça o filme que ele quer ver. A rudeza desse encontro estabelece uma disputa entre os dois personagens que reverbera no comportamento de ambos no decorrer de todo o filme e estará presente mesmo quando laços de amizade e atração aproximarem os dois – há uma cena em particular de sexo filmada com um ângulo baixo que é tudo menos uma relação carnal de prazer e satisfação; antes disso, é uma maneira de extravasar uma energia tensionada que chegou ao limite da contenção (se de Margarida emanava uma força associada à maternidade de Oxum, Emerson e seu ímpeto é todo ele Oxóssi de arco e flecha na mão, pronto para o combate).

Talvez por isso, os diretores tenham sentido falta de uma força feminina no filme, e deram vida a uma personagem peculiar: autointitula Brasil (vivida por Arlete Dias), a mulher maltrapilha e de discurso aparentemente tresloucado é mais um risco assumido pelo filme. Isso porque não é difícil associá-la à personagem da doida caricata, a mendiga que fala verdades quando ninguém mais lhe dá crédito. Além disso, a discussão sobre a condição feminina que ela puxa para si pouco transborda para o restante do filme, mesmo que para a personagem de Valdineia Soriano que de moradora local, passa a interpretar a mãe de Emerson no filme dentro do filme.

Como se não bastassem todos esses elementos, Ilha guarda para o final não uma, mas pelo menos duas viradas que desnorteiam o curso narrativo e colocam o espectador em xeque – assim como os próprios caminhos que o filme segue quando já está prestes a acabar. É quando a metalinguagem ganha ainda mais camadas e Ilha se lança a uma poética dura, de certa forma disruptiva e cruel, e cuja reconciliação só será possível através da imagem cinematográfica. O cinema, aqui, é antes de tudo (re)encontro.

Ilha (Brasil, 2018)
Direção: Glenda Nicácio e Ary Rosa
Roteiro: Ary Rosa

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