Não é mesmo fácil dedicar pouco mais de 4 horas num filme de tão poucas respostas quanto Luz nos Trópicos. Se, por um lado, há algo de exigente na construção narrativa por conta da dilatação temporal, por outro, chega a ser mesmo convidativa a maneira como o filme interpela o espectador através de um processo de busca – seja a busca do próprio filme por uma linguagem que dê conta de suas inquietações muitas (decoloniais?), algo que se mantém como um fluxo constante nesse cinema de experimentação que tem sido exercitado pela diretora Paula Gaitán; seja a busca dos personagens que, apesar do cenário idílico, querem encontrar consigo mesmos em alguma medida.
Nesse sentido, Luz nos Trópicos empreende dois modos convergentes de investigação e procura que, dito de modo muito generalista aqui, acabam por sinalizar um embate do Homem com a Natureza e também com a sua natureza. Essas duas direções de confronto, aparentemente, são as linhas narrativas que serão perseguidas na trama, pelo filme e pelos personagens, diante da paisagem opressora, mesmo que exuberante, ou pelo menos serão nas quais me deterei aqui, sendo este um filme tão aberto de possibilidades interpretativas.
A partir dessa proposição de um duplo jogo de trajetos a serem perseguidos e experimentados – a travessia e deslocamento dos personagens por vezes podem ser vistos como um encanto em si, a luz, a flora e a vida animal a coexistir no mundo selvagem – poderemos perceber dois núcleos narrativos que empreendem seu percurso, inicialmente de modos opostos: o brasileiro/latino que vive nos Estados Unidos e vai ao encontro de sua ancestralidade indígena – o ator Begê Muniz e sua serena representação da incompletude e busca; e a trupe europeia que chega para desbravar as matas “virgens” brasileiras – compostos, dentre outros, por atores como o português Carloto Cotta, a brasileira Clara Choveaux, que vive no filme uma francesa, além do ator, cantor e compositor Arrigo Barnabé, todos se doando com muito empenho e certo deleite ao desconforto e às hostilidades da paisagem.
No entanto, é menos um sentido histórico stricto que se processa aqui, mesmo numa reconstituição ainda que simbólica com esses personagens a representar as nações coloniais – portuguesas, francesas –, e mais um apontamento sobre os intercursos dessa gente que cruza o mundo num caminho natural e brutal de deslocamento dos povos. Ora, as intempéries e obstáculos que o grupo de europeus enfrenta ao atravessar a floresta, com suas roupas de época e o desconhecimento da geografia, um tour de força braçal mesmo, desgastante fisicamente, pouco representa a maneira como os colonizadores, com suas armas e armadas, chegaram e dominaram o novo mundo, seus povos e territórios. O que está em jogo no filme são os sentidos de descobrimento empreendidos em meio àquele panorama exterior e que remetem à intersecção violenta dos povos e sua consequente mestiçagem – por isso, é sentida a ausência de personagens e atores negros a representar outra faixa identitária que tão fortemente contribuiu para a formação de um povo como um nosso.
Mas se já reconhecemos aqui que Luz nos Trópicos possui muito pouco interesse numa reconstituição de fatos e linhas historicizantes, apesar de apontar indiscutivelmente para a formação da identidade brasileira (ou latino-americana), o filme se lança num emaranhado labiríntico e rigoroso de encenação austera, escondido talvez por trás de uma aparente liberdade de trânsito e movimento na relação da câmera com os atores e suas interações em cena. E é aqui onde a concepção formal do filme precisa ser confrontada: há certa fascinação (fetiche talvez?) pelo plano contemplativo e pelas cenas que embaralham registros, temporalidades e gestos autorais disruptivos, capazes de deslocar o próprio espectador de uma forma incômoda, que o filme se lança a um desgaste narrativo que parece ter justamente essa intuição de vencer pelo cansaço; ao mesmo tempo – e é onde reside o paradoxo da obra –, é justamente esse gesto de deslocamento o catalisador de certos sentidos de busca, encontro e confronto – a descoberta de si ou do mundo lá fora –, à medida em que o próprio filme parece estar em busca de um modo de registro que seja ele mesmo capaz de dar conta da complexidade dos temas tratados.
De qualquer forma, fica claro que as inquietações que permanecem após a fruição de Luz nos Trópicos são muito mais sedutoras que a experiência de fruição do próprio filme, apesar daquela depender exclusivamente dessa; é como se o filme fizesse muito mais sentido – porque se completa melhor – a partir do momento em que é preciso confrontá-lo depois de vê-lo e não durante sua exibição. Isso acontece com muitos outros filmes, mas o caso aqui parece potencializado pelas escolhas narrativas e sua opção pelas poucas concessões. Os riscos são grandes, as possibilidades de leitura maiores ainda.
Luz nos Trópicos (Brasil, 2020)
Direção: Paula Gaitán
Roteiro: Paula Gaitán