O debate sobre as pautas identitárias, especialmente de gênero e raça, tem ganhado proeminência e espaço no cinema há um bom tempo, e Para Onde Voam as Feiticeiras é um ótimo exemplo de como um filme pode reinventar essa discussão, por vezes dizendo coisas um tanto óbvias para quem já está acostumado a esse tipo de proposição sobre o tema, mas friccionando-a no próprio encontro e confronto que o documentário permite e cria no seu dispositivo que mistura intervenção e performance de um modo um tanto caótico, mas não menos desestabilizador. Mas isso se deve aos próprios embates que se dão no filme e menos pelo modo desordenado com que se apresenta narrativamente – outros filmes podem até se beneficiar desse tipo de desregramento, o que não é o caso aqui, mas também não é algo que atrapalha.
Temos um grupo de artistas e ativistas incansáveis da causa LGBTQIA+ e negra, em diálogo interseccional e com pretensões ampliadoras, que inicialmente propõem algum tipo de intervenção urbana, com microfone (e câmera) abertos, a fim de que as inquietações, discursos de ordem e todo tipo de afronta ganhem espaço e corpo, seja através dos próprios proponentes daquele ato, mas também por quem passa na rua e se sente à vontade de dar a cara a tapa, falar e mandar seu recado.
Esse senso de interferência no cotidiano de uma rua do centro comercial de uma grande cidade como São Paulo, um senso de marcação de presença daqueles corpos contestadores com o claro intuito de agregar iguais, ao mesmo tempo em que confronta o diferente, é um dos maiores acertos do filme enquanto dispositivo escolhido para que os temas floresçam. E florescem bastante, eles ramificam e se voltam até mesmo para os diretores e os proponentes daquela roda de contestação.
Eliane Caffé, que vinha de Era o Hotel Cambridge, filme feito numa ocupação popular, aparado num grupo de defesa da moradia em São Paulo – e o filme atual nasce a partir do contato com parte dos ativistas que transitam nessas lutas – une-se agora a sua irmã, Cláudia Caffé e a Beto Amaral na direção deste longa. Mas o fato é que Para Onde Voam as Feiticeiras é feito a muitas mãos, claramente apoiado nas opiniões, sugestões e direcionamentos que partem do próprio grupo de ativistas, autodenominado “as manas”, homens e mulheres trans, sujeitos identificados nas inicias da legenda queer, muito apropriados e preparados para problematizar e jogar na roda suas preocupações e frustrações com a forma com que determinados temas, que tanto lhes cabem, são tratados.
Todos ali estão imbuídos da missão de chacoalhar as ideias e pensamentos mais banais sobre a resistência desses corpos dissidentes (e vale lembrar aqui as palavras da militante baiana que participa de Era o Hotel Cambridge, Carmen Silva: “A nova ordem é a desordem do sistema”). Nesse sentido, os melhores momentos do filme se dão quando os confrontos atravessam a tela claramente no embate entre os indivíduos – a cena em que os ativistas entram numa roda de pregação de um pastor (?) na rua e na tentativa de diálogo, eles são intimidados diante de uma plateia um tanto aguerrida – a presença das pessoas trans ali por vezes soa como um insulto a eles, menos até para o pregador e mais para o público fiel que o rodeia – até que um dos ativistas, num momento de fala, é praticamente coagido pela presença de um popular que vai para cima dele; o diálogo é difícil, mas já é sabido que a grande luta é essa mesma. Há ainda o momento em que a própria diretora Eliane Caffé é posta na parede por conta d exposição de seus privilégios naquele ambiente – uma das manas chega a falar para ela que, apesar das boas intenções da cineasta, ela detém um lugar claro de poder ali, que é o de fazer aquele filme, daquela forma, diante do seu background e capacidade de agregar produção, e decidir sobre quem chamar para aquele filme.
Se há uma pulsão desestabilizadora nesse filme, algo que ultrapassa a mera proposição do “filme necessário sobre coisas que precisam ser ditas” (ditas para os convertidos, aliás), é este de trazer o embate mais para o centro dos grupos que empreendem o próprio debate e precisam fortalecer discursos. Uma pena que o filme se sinta na obrigação de mediar muitos desses debates e com isso se torna um tanto caótico no emaranhado de subtemas e discussões que traz à tona – vão entrar em cena os diálogos com grupos indígenas e moradores de outros bairros e ocupações, gente ligada à causa racial – amplitude que, se demonstra um entendimento macro da situação e da necessidade de união das resistências (com seus muitos conflitos internos a serem remediados), e isso tudo confere ao longa uma imperfeição de forma que, curiosamente, o faz alcançar um lugar muito particular nessa seara da proposição dos confrontos. É preciso desordenar o sistema.
Para Onde Voam as Feiticeiras (Brasil, 2020)
Direção: Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral
Roteiro: Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral