Uma vida driblando a morte*
Celebrar a obra (e também a vida) de um dos maiores cineastas brasileiros é o intuito principal de Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, dirigido por Bárbara Paz. Mas essa é só uma das muitas camadas deste filme que foi escolhido para representar o Brasil na corrida para o Oscar de filme estrangeiro no próximo ano.
É a primeira vez que um documentário é escolhido para nos representar no Oscar, opção corajosa, mas também apoiada no fato do nome de Hector Babenco ser conhecido da indústria americana de cinema.
A diretora Bárbara Paz conversou com A Tarde e está radiante com a escolha: “Eu estou muito feliz e o Hector deve estar bailando lá em cima. Agora começa uma longa campanha para as pessoas assistirem ao filme lá fora. Nos Estados Unidos, muitos cinemas ainda estão fechados, mas o filme vai para o streaming. E as chances de mais gente ver assim é maior, embora nós adoraríamos que as pessoas fossem ver o filme na tela grande”, pontua a diretora.
Mas o mais fundamental é a luz que o filme lança sobre o artista e também sobre o homem que passou a vida driblando a morte. Já aos 38 anos, descobre um câncer, doença com a qual vai conviver e da qual vai tratar até seus últimos dias – Dráuzio Varela, seu médico à época, chegou a lhe dizer que ele teria apenas poucos meses de vida.
Muitos tratamentos e cuidados, muita vontade de fazer filmes, fizeram com que Babenco alongasse sua existência (morreu somente em 2016, aos 70 anos de idade) e criasse uma obra fundamental para o cinema brasileiro.
Hector nasceu na Argentina, mas naturalizou-se brasileiro nos anos 1970 e aqui começou uma frutífera carreira como cineasta. Filmes como Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia (1977) e Pixote – A Lei do Mais Fraco (1981) são marcos do cinema brasileiro, pós Cinema Novo e Cinema Marginal, em meio ao governo ditatorial, assinalando o talento do jovem realizador.
Mas o grande sucesso mundial veio com O Beijo da Mulher-Aranha (1985), coprodução entre Brasil e Estados Unidos, filme pelo qual ele foi indicado ao Oscar de Melhor Diretor – o longa acabou levando o prêmio de Ator Coadjuvante para William Hurt. Logo em seguida ele ainda dirigiria ali Ironweed (1987), protagonizado por dois nomes de peso: Meryl Streep e Jack Nicholson.
Encarar a morte
O filme de Bárbara Paz, esposa de Babenco, estreando na direção com esta obra, é menos uma cinebiografia convencional e muito mais um recorte celebratório e compreensivo do trabalho de Babenco e de sua trajetória artística. Mistura cenas de seus filmes com imagens dele, já nos últimos anos, acamado em leitos de hospitais, debilitado fisicamente, mas de mente ainda ativa. Há também alguns depoimentos do cineasta feitos para o próprio filme.
“A gente estava fazendo este filme juntos”, conta Paz. “Ele só partiu antes da hora, antes de terminar. Eu poderia ter feito um filme só sobre o fim, só nos hospitais, mas não foi a minha escolha. Eu queria contar o retrato desse homem, a trajetória que ele teve até ali. É um filme sobre ele, mas acima de tudo é um filme sobre a vida, de um ser humano que amou viver e saiu de cena fazendo o que mais ama, filmando até o fim”, afirma.
Bárbara Paz, companheira do cineasta, filma o homem diante da falência do seu próprio corpo, encarando muito frontalmente as circunstâncias da debilidade causada pela doença. Isso acaba revelando também a intimidade e a cumplicidade do casal, marido e mulher, mas também mestre e aprendiz – há uma bela cena no início do filme em que Babenco dá instruções a Bárbara de como calibrar a lente da câmera que o está filmando.
O filme é também uma aula de cinema, através dos passos daquele que estava de partida. “A morte tem muitos significados, é uma despedida, mas também um renascimento. Eu aprendi a transformar as muitas perdas que eu tive na minha vida, a me transformar. A morte transforma a todos ao redor”, confidencia Bárbara Paz.
Um filme de vida
É bastante evidente na obra de Babenco e na sua própria postura como diretor e cidadão que ele não temia a morte. Para quem viveu assombrado pela temível doença, Babenco soube olhar com muita dignidade e sapiência para essa ideia de fim – ao menos nesse plano terreno. O filme, aliás, termina com um exercício de imaginação que prolonga a vida, para além da morte, através do próprio gesto de ficcionalização.
O último filme dirigido por Babenco, Meu Amigo Hindu (2015), lançado um ano antes de sua morte, já escancarava muito sem rodeios esse processo de autorreflexão e consciência da finitude. Trata-se de uma biografia dele mesmo, interpretado por Willem Dafoe – que é também produtor associado do documentário –, reimaginada e ressignificada pela força da ficção e do cinema em si mesmo.
“Nós estávamos filmando o documentário devagar, aos poucos, mas o Hector foi piorando muito nos últimos anos, daí paramos tudo para fazer o Hindu. Ele intuía que seria seu último filme, a última cena de cinema, que seria essa despedida. Ele até tinha outros roteiros, mas como voltou o câncer e ele pensou que não ia ter mais tempo, preferiu fazer seu último filme”, afirma Paz.
A frase que compõe o subtítulo do filme (“É preciso ouvir o coração e dizer: parou”) foi proferida pelo próprio diretor, o que também acentua a clareza que ele encarava todo o processo. O documentário consegue transmitir isso com um misto de verdade e também delicadeza, respeito desmedido pela vida e obra do diretor, e enorme carinho de uma jovem cineasta por um grande mestre.
A diretora ainda arremata: “A pessoa que gosta da vida, que gostava de viver como o Hector, e transformou a vida dele, mantendo-se vivo através do cinema, isso é de uma beleza imensa. O filme dá valor à vida e esse não é um filme de morte. Apesar de ser uma despedida, é um filme de vida”.
Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou (Brasil, 2019)
Direção: Bárbara Paz
Roteiro: Bárbara Paz e Maria Camargo
*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 29/11/2020)