First Cow – A Primeira Vaca da América

Terra de oportunidades*

O subtítulo que First Cow recebeu aqui no Brasil (“A Primeira Vaca da América”), além de redundante, aponta para uma pequena irregularidade: não se trata do primeiro desses ruminantes na América, mas apenas no território de Oregon, onde o filme se passa. Estamos no século XIX em meio à marcha para o Oeste (o Estado encontra-se lá no extremo-oeste do país).

Os “americanos” estão tomando o território que, já emancipado, se constitui como os Estados Unidos como o conhecemos hoje. As pessoas vêm chegando para se estabelecer na terra e fazer dali o seu lar, enquanto muito ainda é novidade por ali. Uma vaca, por exemplo, é animal desconhecido por aquelas paragens, e vemos que um mirrado exemplar dela chega para o administrador do condado local.

Em um filme aparentemente banal, a diretora Kelly Reichardt faz uma reconstituição de época muito feliz, embora esteja interessada em um tipo de representação que é mais conceitual, mais significativa sobre a formação do país e de certa moral política (e até mesmo econômica) que se estabelece ali, do que buscar apenas uma fidelidade de representação histórica.

Isso coloca Reichardt em um lugar muito específico dentro do cinema contemporâneo norte-americano, aquele de viés mais independente, porque seu filme tem um claro interesse histórico pela formação do seu país. No entanto, a diretora opera em uma chave oposta ao da suntuosidade dos locais e das ações e da grandiloquência cinematográfica de um filme de época. Muito pelo contrário, seu cinema é o do minimalismo, dos pequenos detalhes, de uma cadência temporal espaçada e sem atropelos (vide filmes mais intimistas, como os ótimos Certas Mulheres (2016) e Wendy e Lucy (2008)).

Quem conduz a trama é o jovem Cookie (John Magaro), um aprendiz de cozinheiro e padeiro que presta serviços para as pessoas do local, sempre em busca de maneiras para ganhar dinheiro em uma vila em construção; o filme começa com ele trabalhando para caçadores de pele, assim como ele aceita encomendas para cozinhar algumas iguarias para os mais abastados. A comida acaba se tornando elemento importante no filme, tanto pela escassez de alimentos e matéria-prima, o que a torna um bem muito valioso, quanto pelo senso de oportunidade que irá bater à porta de Cookie.

América em formação

Há de se fazer um paralelo muito pertinente com filme anterior da diretora, O Atalho (2010). Ali, um grupo de colonos percorria o deserto norte-americano rumo ao Oeste, justamente em busca de fincar raízes em uma terra de prosperidade – uma terra que nunca chega. O filme novo de Reichardt parece avançar nessa História por se concentrar no mesmo ambiente, mas em outra configuração sociopolítica.

Em O Atalho, um indígena é pego pelo grupo e feito prisioneiro, dada as disputas e confrontos violentos que havia na época, o que provocou a dizimação dos povos nativos (assim como aconteceu em toda a América Latina), algo que já vimos em diversos filmes de faroeste; já em First Cow, vemos uma família indígena já “domesticada” e acolhida no grupo familiar do administrador do condado local.

Apesar de não filmar exatamente tal extermínio, nem de trazê-lo para a trama, o filme sugere esse percurso histórico, maneira com que Reichardt lida com um tipo de comentário político e contextual sobre aquele universo. Se os nativos indígenas já foram excluídos e os negros escravizados fazem parte de uma realidade muito mais pertencente ao sudeste do país, o filme acrescenta outro personagem fundamental para a marcação histórica da formação do povo norte-americano: o chinês King Lu (Orion Lee).

Mais do que os demais, ele está ali para se dar bem de alguma forma, tem um passado misterioso e chega fugido àquela nova terra. Vai travar amizade com Cookie e, juntos, buscam criar modos de prover o estômago e os bolsos, especialmente pelo esperto olhar empreendedor do chinês. Pois Cookie, aprendiz de padeiro, vai conseguir usar o leite da vaca, roubado do administrador local, para inventar uma espécie de bolinho frito, posteriormente adoçado com mel e canela.

A novidade é um sucesso e as pessoas fazem fila para comprar o novo quitute. Os dois personagens aprendem o valor do negócio e o benefício do lucro, comercializando um novo produto, inventado como que por acaso (curiosamente, por um rapaz com o nome de “cookie”), e que aplaca a fome e a sede por novidades dos novos moradores na nova terra.

Com isso, First Cow revela de fato suas pretensões: o filme acaba se tornando um estudo apurado e inicial, em caráter micro, do florescimento de um capitalismo econômico que se estabelece naturalmente naquela paisagem. Tal empreendimento possui uma moral financeira simples, mas que sabemos que ganhará suas garras selvagens na América das oportunidades.

King Lu é um forasteiro naquelas paragens (mas quem ali, fora os indígenas, não o são?). Até a vaca é de fora, providência mais do que bem-vinda. Em First Cow, todos são estrangeiros, mas acabam se confundindo com uma terra que é de todos, e logo será de poucos. De qualquer forma, as oportunidades para se fazer crescer o bolo estão logo ali.

First Cow – A Primeira Vaca da América (First Cow, EUA, 2020)
Direção: Kelly Reichardt
Roteiro: Kelly Reichardt

*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 14/06/2021)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos