No sertão das maravilhas*
A pequena Alice caminha pelas bordas do sertão da Bahia e, ao invés do coelho branco, encontra pelo caminho o Bode Preto; no lugar do Chapeleiro Maluco, se depara com o Sanfoneiro; e a Rainha de Copas dá lugar à Rainha do Cangaço – que aqui é salvadora e não malévola, lutando contra os desmandos do Coronel e seus jagunços. O longa-metragem baiano Alice do Anjos reconta, assim, a história de Alice no País das Maravilhas, clássico universal de Lewis Carroll.
O filme, primeiro longa dirigido pelo cineasta Daniel Leite Almeida, acabou de ser exibido no Festival de Brasília, de onde saiu com seis candangos: prêmio de direção, júri popular e prêmio da crítica (oferecido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema), além das premiações para direção de arte (Luciana Buarque), maquiagem (Claudia Riston) e figurino (Lívia Liu).
É um feito e tanto para um longa produzido no interior da Bahia, fruto dos editais de incentivo aos filmes fora dos eixos centrais de produção – iniciativa estatal que até há alguns anos vinha sendo uma constante no cinema brasileiro, através do trabalho de descentralização feito pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), mas que atualmente se encontra paralisado.
“É sempre muito difícil para os realizadores do interior terem acesso aos recursos públicos para o cinema”, conta o diretor Daniel Leite Almeida que conversou com A TARDE sobre o filme após a premiação em Brasília. Ele nasceu em Goiás, mas reside atualmente em Vitória da Conquista, para onde se mudou a fim de estudar Cinema e Audiovisual no curso da Universidade do Estado da Bahia (UESB). Depois de concluído o curso, fundou em 2015 a Ato3 Produções. Foi com essa produtora que eles conseguiram os recursos, via edital do Ministério da Cultura, ainda em 2016, para a realização do longa.
A partir daí, Alice dos Anjos passa a ganhar forma. “Nós começamos a pensar no filme como uma escola mesmo, produzir cinema para a gente aprender a fazer. Começamos a chamar colaboradores de fora a fim de profissionalizar os artistas e pessoas locais”, conta Daniel. É o caso da diretora de arte, Luciana Buarque, que já trabalhou em produções como Hoje é Dia de Maria e A Pedra do Reino, ambos trabalhos de Luiz Fernando Carvalho.
Ela, no entanto, arregimentou uma equipe local de profissionais para trabalhar a arte do filme. Grande parte do elenco é também da cidade de Conquista e de outros lugares da Bahia, ainda que sobrasse espaço para que contassem com a participação do ator Fernando Alves Pinto (que interpreta o Bode). Alice dos Anjos foi gravado nos arredores de Vitória da Conquista e de Anagé.
Fantasia sertaneja
Através do trabalho da diretora de arte, as produções assinadas por Luiz Fernando Carvalho acabaram se tornando uma referência básica para o filme – o que fica evidente no seu visual e aspecto estético. Mas Daniel conta sobre outras influências: “O filme é atravessado por referência literárias, não só o Alice no País das Maravilhas. É quase um mundo de Sofia em que ela viaja pelas páginas da literatura para entender questões filosóficas. Além de ser uma fábula, tem a presença do folclore brasileiro, de Manoel de Barros, tem muito de literatura de cordel também”, pontua o cineasta.
Além disso tudo, Alice dos Anjos é ainda um filme musical. No entanto, o diretor conta que a ideia original não era essa: “Inicialmente, não era para ser musical. Mas a partir do recurso financeiro que ganhamos, e sempre buscando construir o melhor desenho estético para o filme, eu comecei a pesquisar outras obras que foram produzidas a partir da história clássica de Alice e a grande maioria eram de musicais”.
Como o imaginário nordestino tem muito de música, a decisão de dar um toque musical ao filme não demorou muito. “Eu pensei que seria rico se a gente transformasse o projeto num musical. Tive que tomar essa decisão, conversei com os técnicos de som, porque a gente ia fazer com o mesmo orçamento, e eles toparam. Então, João Omar [que assina a trilha sonora original do filme] começou a musicalizar partes do roteiro”, afirma Daniel.
Trabalho afiado
A partir de todas essas referências – e pensando que o filme tem muito de uma estética circense, de teatro mambembe – Alice dos Anjos é essa colcha de retalhos bem nordestina. Pode parecer muita coisa junta em um mesmo filme, mas o resultado é mesmo coeso e muito fiel às raízes que ele busca elogiar – seja o texto clássico de Carroll, seja a ambiência sertaneja e suas marcas culturais.
Outro dos trunfos do longa é a presença da atriz mirim Tiffanie Costa, que passou por testes de elenco para ser escolhida como a protagonista do filme. Natural do município de Malhada de Pedras, ela carrega muito bem a trama que gira a partir das suas andanças e questionamentos pelo sertão.
Os prêmios ganhos no Festival de Brasília, para além de destacar a qualidade técnica e o trabalho de condução do diretor, aspectos que ficam realmente evidentes na tela – trata-se de um filme muito vistoso e caprichado no seu aspecto visual –, também contribuem para o incentivo à produção fora dos grandes centros culturais do estado. “É muito bom ver a cidade vibrando com o filme e com os prêmios, isso dá um gás e traz uma sobrevivência importantíssima para o cinema local”, comemora Daniel.
O ano de 2021 já estava sendo ótimo para o cinema baiano. Em janeiro, o longa Açucena, de Isaac Donato, venceu o prêmio principal na Mostra Tirantes, onde outros dois longas baianos se apresentavam – incluindo aí Rosa Tirana, de Rogério Sagui, filme que tem muitos pontos em comum com Alice dos Anjos, também rodado no interior, na cidade de Poções. “O mais importante é o cinema que a gente quer construir com isso. Um cinema que seja inclusivo, que seja coletivo, horizontal e, de alguma forma, com consciência social”, arremata Daniel.
Alice dos Anjos (Brasil, 2021)
Direção: Daniel Leite Almeida
Roteiro: Daniel Leite Almeida
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 19/12/2021)
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