Festival do Rio – Parte 1

Blind Detective (Man Tam, Hong
Kong/China, 2013)
Dir:
Johnnie To 
Para
quem dirige filmes em escala fordista de produção, geralmente dois por ano, faz
muito bem que Johnnie To tente diversificar um pouco seus trabalhos, embora
ainda seja fiel ao gênero policial. Digo isso porque não estava preparado para
o tom de escracho e comédia pastelão desse Blind
Detective
, um filme que não esconde sua verve de despretensão. 
E
é curioso como esse humor dos filmes orientais é craque em não ter vergonha de
enfiar o pé na jaca. É muito próximo daquilo que Stephen Chow fez em Kung-Fusão, para ficar num exemplo que
vem de Hong Kong. Mas a diferença aqui é que To é um cineasta muito mais
preocupado com a movimentação dos corpos no espaço, no cuidado de uma certa
coreografia nas cenas de ação e perseguição, embora Blind Detective não tenha o mesmo rigor estético e a construção do
clima de suspensão de Exilados.  
Isso
porque nesse registro que se leva menos a sério, To está mais preocupado com a
adrenalina e os desdobramentos da investigação do desaparecimento de uma
garotinha há muito tempo. Andy Lau interpreta esse policial cego recrutado por
conta dos seus dotes sensitivos de olfato e audição aguçados (paladar também, e
come-se muito nesse filme). Daí que cheiro, som e sabores são como ferramentas
de trabalho, o que possibilita uma série de situações curiosas, inteligentes e
engraçadas usadas por To.
Mas
apesar do todo divertido que esses elementos produzem, o filme se torna por
vezes repetitivo e cansativo, se estendendo demais. É preciso também mergulhar
nesse tom escrachado e muitas vezes gritado que os personagens assumem, o que
pode afastar um pouco, tendo também sua culpa em irritar o espectador com seu
tom acima do tom.
A Imagem que
Falta

(L’Image Manquante, Camboja/França,
2013)
Dir: Rithy Panh 
O
cineasta cambojano Rithy Panh vem para fazer justiça. Sua arma é o cinema. O
filme se engaja em denunciar os abusos do regime do Khmer Vermelho no Camboja,
detentor do poder no país entre 1975 a 1979, promovendo um verdadeiro genocídio
entre seu povo, relegado à miséria, fome e doenças; O cineasta está preocupado em
não deixar que se esqueça dessa parte sombria da (sua) História.
Longe
de ser um filme denuncista por si só, e autocentrado no depoimento do próprio
cineasta que teve sua família dizimada durante o período, A Imagem que Falta é um apelo à memória. E acaba sendo também um
belo tratado sobre a natureza política da imagem registrada, essa que revela
para a posteridade as caras da realidade de seu tempo. São essas as imagens que
faltam.
Na
busca por retratar esse período nebuloso, o cineasta não encontrou imagens que
dessem conta do horror e de todas as mazelas que seu povo sofreu durante o
regime do Khmer. Por isso resolve ele mesmo, através da inclusão de bonecos de
madeira em miniatura, “reinventar” imagens que contem os abusos que seu povo
sofreu na mão do duro regime repressor.
Poderia
até parecer boba a sobreposição dos bonecos em imagens documentais da época, mas
o efeito de deslocamento e estranhamento é justamente a impressão que faz o
discurso do filme soar tão forte. Para além de uma obra politizada e fortemente
acusatória, o texto em off é de uma
beleza dura e melancólica na forma como o diretor relata a experiência de
reviver aqueles acontecimentos e os subterfúgios que teve de encontrar para
realizar seu filme. 

algo de poético na fala dele, e isso torna A
Imagem que Falta
mais do que uma peça de resistência, um levantar de
bandeira, longe do didatismo e do teor agressivo de muitos filmes que querem denunciar
situações de opressão. A crueldade exposta, mesmo nessas imagens “deficientes”,
bastam para que as facetas do horror sejam reveladas, muito embora essas
imagens não querem ser definitivas. Como o próprio diretor coloca, não é uma
imagem final porque desta estaremos sempre à procura. Nesse processo de busca, a
memória revive. 

 
Vosso Ventre (Sinapupunan, Filipinas, 2012)
Dir: Brillante Mendonza 
Quem
diria, Brillante Mendonza sabe ser terno. Essa é uma das grandes diferenças em
relação a seus trabalhos anteriores, embora seja muito fácil reconhecer aqui o
cineasta de Execução e Lola na forma como filma personagens em
situações de compadecimento constante. Aliás, desse último filme o diretor
resgatou um elemento que marca presença forte em Vosso Ventre: trata-se de uma obra de resistência, de luta.
Conhecemos
a rotina das pessoas que vivem em casas de palafita no sul das Filipinas, em
especial o casal Shaleha (Nora Aunor) e Bangas-na (Bembol Roco). Eles pescam,
trançam e ajudam a realizar os partos das mulheres do local. São pobres e
trabalham dignamente para se sustentar a cada dia. É essa a resistência, de (sobre)viver
 num ambiente desfavorável, combatendo
intempéries naturais e forças humanas (há a presença de um militarismo que ronda
o lugar e deixa tudo num clima constante de insegurança).
Mendonza
capta essa rotina de vida com sua câmera na mão que fortalece o tom documental;
seu olhar continua aguçado para os pequenos gestos e acontecimentos cotidianos ao
redor. Mas ao filme soma-se ainda o fator cultural-religioso porque estamos
numa região de maioria islâmica, e logo os costumes começam a definir os
caminhos dos personagens. Pois quando Shaleha percebe que não consegue dar um
filho a seu esposo, decide procurar uma moça jovem que possa se casar com ele
para lhe dar herdeiros.
Está
dada mais uma prova de luta: eles se esforçam ao máximo pra conseguir arranjar
esse casamento e ainda precisam pagar um dote valioso em dinheiro que eles
ralam muito para tentar conseguir. É na dureza cotidiana que o diretor capta as
motivações e desejos dos personagens, com destaque para o rosto e os olhos
expressivos cheios de esperança de Shaleha. É essa ternura para com os
personagens que tanto fortalece a história. 

Mas o mais curioso
desse trabalho em relação aos anteriores do diretor é sua relação com o nascer.
Enquanto antes a morte espreitava os caminhos dos personagens, ditando-lhes
regras e comportamentos, aqui se celebra o nascimento como ato de amor e união,
embora a vida daquelas pessoas naquele lugar esteja cercada de perigos. O filme
abre e fecha ciclicamente com partos filmado com muita crueza (e como símbolo
extremo do esforço), mas sem deixar de lado uma celebração de vida. Nessas
dualidades (nascer/morrer, dureza/ternura), Mendonza cria um dos mais belos
retratos do cotidiano de personagens carentes. Bruto, mas com afeto.

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