O Guiné, país da costa oeste africana, não possui grande tradição cinematográfica. Mas talvez venha de lá o primeiro filme assinado por um realizador da chamada África Negra: Mouramani, rodado em Paris em 1953. É em busca desse filme, dado hoje como perdido, que parte o diretor guineense Thierno Souleymane Diallo. De modo amplo, ele está interessado em investigar o passado do cinema de seu país e o que restou dessa memória audiovisual. Porém, tudo que ele encontra são ruínas.
No Cemitério do Cinema (o título não poderia ser mais significativo desse estado de coisas) é um filme de busca, como vários outros desta edição do Olhar de Cinema, mas seu objeto aqui é histórico e possui uma dimensão simbólica maior, pois não se trata apenas do filme em si, mas de um imaginário social, cultural e político que se depreende dos sons e das imagens em movimento. Sua materialidade, no entanto, está encerrada nos rolos antigos desses e de outros filmes.
O diretor surge diante da câmera como si próprio, mas também como um personagem curioso que empreende a jornada de busca, primeiramente visitando antigos cinemas e produtoras no país atrás de arquivos fílmicos, das películas do passado que deveriam fazer parte do acervo histórico de alguma instituição responsável por preservar e guardá-los. Mas no Guiné, as antigas latas de películas estão empoeiradas e lançadas às traças, espalhadas pelo chão dos galpões abandonados que esses lugares se tornaram, empilhadas nos cantos, sem nenhum cuidado específico.
Apesar da tristeza e desgosto pela perda desse e de vários outros raros materiais, Diallo consegue construir sua narrativa com um mínimo de irreverência e muito senso crítico, sem torná-la amargurada, enquanto nos fazer crer na possibilidade de encontrar o bendito filme. Aliás, será que a obra existiu de fato? Supostamente dirigido por Mamadou Touré, trata-se de um curta-metragem que conta a histórias de realezas antigas do Guiné. Teria sido feito poucos anos antes de Afrique Sur Seine (1955), conhecido por ser o marco inicial do cinema africano subsaariano.
De qualquer forma, a busca pelo filme continua, mas Diallo faz mais que isso. Provocado por um líder que diz, a grosso modo, que o cinema deve servir para mostrar a vida de um povo, o diretor passa então a filmar também o cotidiano daquele lugar, as rotinas de trabalho e até mesmo criar encenações na rua (uma delas, envolvendo um massacre interpretado por crianças com armas de brinquedo, gera uma sensação controversa e polêmica pela representação da violência com certo tom de brincadeira). Ele também conversa com alunos de cinema, deixando evidentes as dificuldades financeiras e materiais para se fazer filmes na África.
Mas há, acima de tudo, um sentimento de que é preciso, mesmo que tardiamente, continuar a tradição formando esse imaginário e fazendo filmes, sem se esquecer do passado – como um paralelo emocional interessante, Diallo começa o filme indo pedir permissão (e buscar também certa benção) a sua mãe para o trabalho que deseja realizar. A reverência à ancestralidade é o que move a busca pelas origens do cinema africano e guineense, algo muito arraigado na cultura africana de modo geral.
Não deixa de ser curiosa a maneira como ele se apresenta no decorrer do filme: com uma mochila de onde sai um microfone tipo boom para a captação de som e sempre descalço, Diallo conversa com as pessoas como se fosse, ele mesmo, um homem-instrumento, uma mistura de cineasta, arqueólogo, repórter e pesquisador, questionando o lugar desses profissionais e suas atribuições para a cultura e o cinema africanos.
Mais curiosa ainda é a viagem feita para a França, já que mais de uma pessoa lhe diz que, com certeza, por lá deve haver alguma cópia guardada do filme que ele busca. O passado colonial não escapa da trama de sugestões abordada pelo filme (e que agora se escancaram), nessa relação de mão dupla com o país europeu colonizador, mas também reconhecido pelo acentuado trabalho de preservação cultural, especialmente da África francófona. O diretor chega a mudar de roupa, inclusive, vestindo terno e gravata para atravessar as fronteiras e chegar nesse lugar importante (muito icônico para os cinemas africanos, com as muitas problematizações que essa relação carrega), além de usar uma indumentária de papelão com informações sobre Mouramani, o filme perdido. Ainda assim, ele segue descalço porque o caminho em busca dessas imagens é cruel e nada fácil.
No Cemitério do Cinema (Au Cimetière de la Pellicule, Guiné/França/Senegal/Arábia Saudita, 2023)
Direção: Thierno Souleymane Diallo