Salvar o amor*
Nascida na França, mas de origem senegalesa, a jovem cineasta Ramata-Toulaye Sy lança nos cinemas brasileiros seu longa de estreia, o belo e trágico Banel & Adama. O filme passou na competição do Festival de Cannes ano passado e chega agora ao circuito nacional, depois de ter sido o filme de abertura da Mostra de Cinemas Africanos que aconteceu há poucas semanas em Salvador.
A diretora esteve presente no evento para apresentar o filme e conversar com o público – atualmente, ela está passando um período em São Paulo em uma residência artística a fim de preparar o roteiro de seu próximo filme. Na sua passagem por Salvador, Sy declarou que quis fazer de Banel & Adama uma grande história de amor africana, mas não deixou de revelar certas nuances que subvertem os melodramas românticos a que estamos acostumados a ver.
“Minha maior inspiração vem do teatro, de Shakespeare, principalmente Romeu e Julieta. Mas a minha Julieta se torna uma espécie de Lady Macbeth. Me inspirei muito também nas tragédias gregas, como Antígona”, afirmou a diretora em conversa exclusiva com A Tarde. “Essas são personagens femininas muito complexas e passionais e eu queria trazer essa mulher africana com suas muitas complexidades para a tela”, complementou.
Para o público brasileiro, os nomes dos personagens podem causar certa confusão, pois Banel é a mulher e Adama, o homem. E é o nome dela quem vem à frente no título do filme, reforçando o protagonismo feminino na história. “Podemos dizer que Banel é mais importante que Adama no filme. Eu gosto de pensar que numa história de amor, a paixão da mulher é mais forte que a paixão do homem. Isso nas tragédias clássicas, não na vida real”, pontuou.
Se a ideia de amor romântico é o ponto de partida do filme, iremos perceber como a trama caminha por outros lugares mais conflitantes. A história se passa em uma pequena vila no norte do Senegal. Ali, os jovens Banel e Adama sonham em viver uma vida juntos na pequena comunidade – Banel foi casada com o irmão de Adama, mas este morre por acidente e, seguindo as tradições, o irmão mais velho precisa assumir a viúva.
Apesar disso, eles se amam genuinamente e não se trata de uma relação forçosa. Também não veremos no filme este relacionamento amoroso se construir porque o casal já está formado quando a narrativa tem início. As coisas começam a se complicar quando as tradições locais passam a interferir nos planos do dois e, assim, Banel & Adama se torna um filme sobre a manutenção e a continuidade daquele amor.
Vida em comunidade
Apesar de não ter vivido no Senegal, Ramata-Toulaye Sy afirmou que sempre quis contar histórias de pessoas africanas no seu continente. Mais precisamente, o filme se passa no norte do Senegal onde predomina a comunidade Fulani, origem dos pais da diretora. Conhecidos por serem nômades, estão espalhadas por vários territórios africanos, são agricultores e criadores e gado, professam a religião islâmica e possuem até mesmo uma língua própria.
“Quando o filme passou em Salvador, eu ouvi de algumas pessoas que a paisagem vista em Banel & Adama lembra muito o interior do Brasil, as comunidades rurais, a vida no campo e no interior do país. É legal saber que o meu filme pode ser universal nesse sentido”, destacou Sy.
Na trama do filme, os preceitos básicos da tradição dessa comunidade são os maiores entraves para o relacionamento dos protagonistas. Adama faz parte da linhagem familiar dos líderes da aldeia e chegou a sua vez de se tornar o chefe local. Ele, no entanto, recusa a proposta porque não se acha preparado ainda e porque se empenha na criação de um lar para viver com Banel – eles estão desenterrando uma antiga casa nos arredores da vila que foi soterrada pela areia do deserto, casa que muitos dizem ser amaldiçoada.
Banel, por sua vez, sofre com as pressões que recaem sobre as mulheres, notadamente o fato de gerar filhos – algo que ela não quer fazer agora. A ela também é demandada as tarefas domésticas (lavar roupa, cuidar das casas) em prol da pequena vila, mas ela quer mesmo é trabalhar na lavoura e construir sua própria moradia.
Ao mesmo tempo, os animais da vila começam a morrer misteriosamente e uma seca passa a assolar o local. Não demora muito para que as pessoas ao redor associem as penúrias do lugar com as recusas de Banel e Adama, tal qual um castigo divino.
Amor soterrado
O peso da tradição, de forma inicialmente velada, mas depois escancarada pelos demais personagens, colide diretamente na vida a dois. Nesse embate, Adama é quem primeiro cede, o que coloca em risco a continuidade do casal. Quase que obsessivamente, Banel busca não deixar esse amor ser soterrado.
“Essa é a história de uma pessoa que quer manter a paixão. Não é um filme sobre a formação do amor, mas uma história de desconstrução desse amor, com altos e baixos, com seus conflitos e dilemas morais”, disse a cineasta.
Há na trama um personagem secundário, mas muito relevante. É uma criança da vila que nunca diz uma única palavra, mas em vários momentos Banel se surpreende ao vê-lo olhando fixamente para ela, como se a julgasse e talvez até mesmo soubesse dos seus pensamentos mais íntimos. É como se esse garoto representasse a consciência interna da personagem que precisa lidar com seus anseios e alguns segredos que esconde.
Outra figura importante é o irmão gêmeo de Banel, Racine. Em uma das conversas com a irmã, ele faz a distinção: enquanto Banel representa o coração, ele representa a razão. É a força do amor de Banel que faz com que ela enfrente a todos, e o filme sugere ainda certos atos do passado que tornam a personagem muito mais dúbia e complexa nos seus desejos humanos.
Apesar do drama se intensificar, Banel & Adama é um filme bastante bonito esteticamente, contrapondo as dores da personagem com a poesia visual que a cineasta cria junto com a diretora de fotografia Amine Berrada. Elas trabalham com uma série de alegorias e elementos (as águas no início, depois a secura e o pó mais ao fim do filme) para dar conta das turbulências que ameaçam esse amor pulsante, mas também custoso.
Banel & Adama (França/Senegal/Mali/Catar, 2023)
Direção: Ramata-Toulaye Sy
Roteiro: Ramata-Toulaye Sy
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 06/10/2024)