A introdução de Assassino por Acaso serve para explicar que a “profissão” de assassino de aluguel nunca existiu – ela foi uma grande invenção do cinema e da TV estadunidenses. Há, é claro, casos de bandidos e foras da lei pagos para eliminar pessoas da face da Terra, mas a romantização e estilização deste tipo de “emprego” aparece apenas em filmes e séries policiais.
Mas tem muita gente que acredita na existência desse ofício. Usando um policial disfarçado, que se passava por assassino contratado, a polícia da cidade de Houston conseguiu levar a julgamento diversas pessoas que tencionavam matar entes próximos, por diversas razões – seja por vingança, interesses financeiros ou mesmo para se livrar de relacionamentos tóxicos. Esse é o mote de Assassino por Acaso, o mais novo filme de Richard Linklater, já em cartaz nos cinemas.
Trata-se da história real de Gary Johnson, um professor universitário de Psicologia e Filosofia que prestava serviços para a polícia, no final dos anos 1990, operando escutas, até o dia em que teve de substituir um colega e se passar por assassino. Ele foi tão eficiente no papel que acabou “subindo” de cargo e fez disso uma segunda profissão. Numa dessas operações, se apaixona por Madison (Adria Arjona), uma mulher que planeja matar o marido abusivo.
Diretor de sucessos cult como Boyhood – Da Infância à Adolescência e da trilogia iniciada como Antes do Amanhecer, Linklater faz de Assassino por Acaso, no entanto, menos um filme policial e muito mais uma comédia romântica. Poderia ser uma mistura muito confusa de gêneros cinematográficos, mas nas mãos certeiras do diretor e dos roteiristas torna-se uma inteligente e divertida comédia de erros com toques de humanidade e graça.
O roteiro é assinado pelo diretor em parceria com Skip Hollandsworth, jornalista autor de um artigo biográfico sobre Gary Johnson, e também por Glen Powell, ator que dá vida ao personagem. Powell é um astro do momento (fez a comédia romântica Todos Menos Você e também Top Gun: Maverick), além de já ter trabalhado com Linklater na comédia adolescente Jovens, Loucos e Mais Rebeldes.
Nessa dupla função, Powell se mostra muito confortável. O texto do filme possui um frescor cristalino, tornando esse homem muito crível nas suas vulnerabilidades emocionais, mas também muito assertivo na sua competência profissional recém descoberta. O ator explora tanto o seu sex appeal nos momentos mais românticos quanto sua habilidade de encenador ao se desdobrar em tantos papéis ao longo do filme.
Jogo de identidades
Se o filme equilibra-se entre diversos gêneros e caminhos narrativos distintos, é também na intersecção de identidades que passa a residir a potencialidade de Johnson. Ao se ver naquele trabalho de policial casual à paisana, ele precisa exercer muito mais a função de um ator, pois para cada cliente ele desenvolve uma persona diferente de matador profissional.
Johnson precisa se portar com segurança e destemor, transmitindo a ideia de homem durão e sério, próprio do que se espera de um assassino, algo muito distinto da pessoa pacata e inteligente que ele é na vida real. No seu envolvimento com Madison, no entanto, aflora nele um espírito solitário de quem se apaixona, de fato, por uma mulher linda, atraente e que, ainda por cima, está contratando o matador para se livrar de um casamento abusivo.
Johnson segue, então, fazendo o jogo duplo. Para os colegas de polícia, esconde os encontros amorosos que passa a ter com Madison; e para ela, finge ser esse sujeito cheio de segredos que não pode revelar informações pessoais, dizer onde mora, dar detalhes sobre sua vida pessoal, tudo em prol da segurança de ambos. As chaves da confiança se invertem quando Madison passa a ser suspeita de outros crimes investigados pela polícia, plantando uma dúvida nele – e também no espectador.
Assassino por Acaso trafega pelo caminho das incertezas, sempre permeado pelas possibilidades e cegueiras do amor. Mais do que pensar o que seria a nossa verdadeira identidade, diante das muitas outras que podemos assumir em circunstâncias diversas de nossa vida, o filme joga luz também sobre os segredos que escondemos do outro para que não se descubra algo muito próprio de nós mesmos.
Ainda que trace tais reflexões, o filme se sai muito bem como produto popular, seja pelo enredo policial, seja pela eficiente química que se estabelece entre o inusitado casal. É o tipo de produção que faz de Linklater um mestre das comédias inteligentes e divertidas que não precisa ofender ninguém para agradar a um público geral e carente de entretenimento de alto nível.
Assassino por Acaso (Hit Man, EUA, 2023)
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater, Glen Powell e Skip Hollandsworth
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 14/06/2024)