A obsessão de Cronenberg pelo corpo, suas transformações, mutações e estados de prazer não tem limites. É quase uma tara, investigada e elaborada ao longo de uma filmografia consistente e de apreço pelo bizarro. O cineasta consegue ainda dialogar com seu tempo e com as demandas contemporâneas, mesmo que as questões e finalidades sejam praticamente as mesmas. O Senhor dos Mortos é uma bela variação dos temas caros ao diretor, com uma roupagem hi-tech que vem tomando conta de seus últimos filmes, ainda que este aqui perca um pouco de suas forças por não amarrar tão eficientemente seus elementos.
Para quem sintetizou tão bem suas inquietações e seu próprio cinema no filme anterior, o ótimo Crimes do Futuro, Cronenberg ainda tem bala na agulha para avançar nas discussões sobre o corpo como campo de disputas. Dessa vez, dos vivos sobre o que restou dos mortos – material e memorialmente. Karsh (Vincent Cassel), alimentado pelo luto, criou mortalhas e tumbas especiais que monitoram o corpo de um ente enterrado no cemitério para que seus restos mortais possam ser vistos através de um visor na lápide, controlado por um aplicativo. Sua esposa, falecida há pouco, é um desses cadáveres em observação pós-morte, junto com outros defuntos enterrados em um cemitério de luxo.
O filme inventa esse aparato tecnológico bizarro, amparado por corporações estrangeiras muito ricas e interessadas na inovação, antenado com certa cultura da vigilância constante que vivemos hoje. A tecnologia, entendida como novidade ferramental e científica, sempre esteve presente nos filmes do diretor (os instrumentos cirúrgicos de Gêmeos – Mórbida Semelhança, o dispositivo de realidade virtual de eXistenZ ou as capsulas de teletransporte/mutação de A Mosca) e aqui surge como forma de dar vazão às inquietudes da alma de uma sociedade doente psicologicamente.
“O luto tem apodrecido os seus dentes”, alerta o dentista de Karsh na primeira fala do filme. É a senha para indicar a ideia de uma somatização física a partir da dor da alma. É ela quem guia os passos do personagem em sua tentativa de superar a perda, e é claro que isso apenas revela mais paranoia ainda como consequência das fragilidades emocionais – dos personagens masculinos, sobretudo. Karsh tem uma relação próxima com Becca, irmã de sua antiga esposa, ambas muito semelhantes fisicamente (tanto que as duas são interpretadas pela mesma atriz, Diane Kruger).
O ex-marido da cunhada (vivido por Guy Pearce) também está bem próximo dele porque é o gênio da informática que auxilia na manutenção e desenvolvimento dos equipamentos e dispositivos de monitoramento dos túmulos. Karsh também começa a se envolver com outra mulher, deficiente visual (Sandrine Holt). Os desencontros e os segredos desvelados entre eles são os elos que desmembram a trama, nem sempre tão interessantes assim de acompanhar – as ideias conspiratórias que tomam parte do desfecho do filme, ainda que à serviço de um comentário irônico do diretor, apenas desviam o filme de suas questões fundamentais.
E talvez o grande problema de O Senhor dos Mortos é que tais demandas se acumulam na trama, não sem importância, mas amontoadas demais e mal digeridas, perfazendo um todo coerente, mas disforme. Cronenberg parece interessado mesmo é nas possibilidades de se concretizar a obsessão pelo controle do outro – do seu corpo e do seu sossego – a partir do que este corpo em putrefação ainda é capaz de causar nos indivíduos em vida e desassossego.
O Senhor dos Mortos (The Shrouds, Canadá/França, 2024)
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg