Bombaim, a Cidade das Ilusões. Não esperava encontrar tal acunha aplicada à metrópole indiana, centro financeiro de um dos países mais populosos do mundo. Em Tudo que Imaginamos como Luz, da cineasta Payal Kapadia, a cidade se torna espaço de vivências espremidas, filmada com melancolia e vontade de captar a essência de uma lugar difícil de ser entendido como lar, ainda que seja o único que as personagens possuem. É o que elas chamam de “Espírito de Bombaim”.
É um filme sobre existir nessa cidade dividida, segregada, suja e caótica, dentro de um país tão cheio de desigualdades como a Índia, mas também sobre a possibilidade de encontrar amparos uns nos outros. A rede de amizade e apoio criada entre as enfermeiras Prabha (Kani Kusruti) e Anu (Divya Prabha) é a mais evidente delas. Dividem o mesmo apartamento e os anseios por dias melhores. Mais velha, Prabha sofre com a ausência do marido que foi viver na Alemanha e não manda mais notícias há anos; Anu, mais jovem, anda apaixonada por um rapaz de outra casta com quem se encontra escondida entre os turnos desgastantes do hospital.
Essa é a outra forma de amparo que o filme desenha para elas, ainda que vislumbre uma espécie de redenção através de mãos masculinas. O filme poderia apenas mirar no homem como provedor de felicidade, mas Kapadia é muitos mais hábil em construir caminhos possíveis na direção desse amor romântico e, de alguma forma, idealizado, sem torná-lo castrador. Isso talvez porque os personagens masculinos do filme, os que estão em cena, ao menos, têm o seu quinhão de sensibilidade e sentido de cuidado – eles também precisam de afeto.
Mulheres numa sociedade tão patriarcal e misógina como a indiana, as duas amigas vislumbram, a seu modo, um futuro a dois, sem que isso as apaguem como donas de si. Na equação que o filme monta, esse ideal de amor romântico surge como soma na trajetória solitária das duas, mas nunca de modo definidor. Uma outra enfermeira, Parvaty (Chhaya Kadam), amadurece a ideia de retornar a sua cidade natal, no interior do país, tendo menos oportunidades, mas estando mais perto de casa.
Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, o filme segue um ritmo muito cadenciado, à medida que observa o cotidiano e as relações que se formam ao redor das duas amigas, seguindo uma tradição narrativa pouco evocada pelo cinema colorido, festivo e musical da Índia. Kapadia está mais para Satyajit Ray (curiosamente o grande homenageado desta edição da Mostra de São Paulo) do que para Bollywood e suas muitas ramificações populares.
Seu filme anterior, Uma Noite sem Saber Nada, já abordava os modos de convivência e resistência de jovens indianos contra um estado de coisas opressor gerido pelo próprio Estado, com uma roupagem mais experimental. No novo filme, a cineasta investe em uma narrativa mais transparente e também numa política dos afetos que não deixam de ser uma forma de conviver e resistir, enquanto a cidade esmaga. “Vivemos na sarjeta, mas não podemos nos revoltar”, diz Prabha em certa altura do filme.
As personagens aqui não se rebelam, mas observam com olhos atentos o que se passa ao redor e como as gentes como elas se comportam naquela cidade. Em outro sentido, também faz o movimento contrário ao levar a narrativa para o litoral do país. Nessa terça parte final do filme, a trama parece perder um pouco de força, mas um evento inesperado altera o sentido dos encontros, e o filme antevê, com delicadeza e sobriedade, novas possibilidades de realização pessoal.
Mas nada é definitivo ou taxativo. Não se tratam de decisões a serem tomadas ou de tramas que precisam se concluir ao final da projeção. Por entre o caos e a sujeira do mundo, Kapadia desacelera o ritmo da vida e faz suas personagens encontrarem opções e saídas possíveis e viáveis, ainda que a cidade e as circunstâncias não necessariamente favoráveis continuem lá, esmagando os de sua origem.
Tudo que Imaginamos como Luz (All We Imagine as Light, Índia/França/Holanda/ Luxemburgo/Itália, 2024)
Direção: Payal Kapadia
Roteiro: Payal Kapadia