É comum encontrar enredos em que o protagonista retorna à sua cidade natal por conta de uma tragédia familiar, morte de alguém próximo geralmente. No caso de Misericórdia, filme de Alain Guiraudie, Jérémie (Félix Kysyl) retorna à vila de sua infância por causa do falecimento do padeiro local. Ele vai ficar hospedado justamente na casa da viúva (Catherine Frot) do homem e ali volta a estabelecer contato com algumas pessoas que marcaram sua infância e juventude, como Vincent (Jean-Baptiste Durand), filho do casal e seu melhor amigo, além do padre local e de um antigo vizinho.
Como sempre em seu cinema, o diretor francês parte de um movimento inusitado, mas bem que deixa de lado o tom bizarro e desconfortável de outros filmes seus para se concentrar na rede de reviravoltas e descobertas que se sucedem na trama. Não demora para que descubramos as relações mais íntimas de Jérémie com o falecido e seu interesse mais que amigável em outros personagens dali. Vincent também revela suas inconstâncias emocionais e, de início, soa interessado no rapaz, evocando uma tensão sexual entre os dois, mas em outros momentos parece ameaçador e emocionalmente instável também. Fora o fato de achar que o antigo amigo voltou porque estaria interessado, na verdade, em sua mãe.
Os segredos dos personagens vão sendo revelados aos poucos, seus desejos mais escondidos vão vindo à tona, em alguns casos apenas intuídos pelo público, desafiando um tipo de moral fácil de associar a uma comunidade interiorana. No entanto, nada no roteiro é feito para chocar ou impressionar, nem aos demais personagens, nem ao próprio filme, que segue seu caminho de desventuras naturalmente, enquanto Jérémie se enreda e se complica cada vez mais na prospecção dos seus desejos, tendo de lidar também com aquilo que os outros projetam nele.
Guiraudie trabalha com agilidade nos diálogos e na montagem, o que torna a trama de Misericórdia muito agradável de se acompanhar. É filme de um cineasta em pleno controle de sua narrativa, capaz de criar um ambiente ao mesmo tempo crível e também muito particular pela forma como as relações se desvelam ali. Parece não existir ninguém mais morando nesse lugar, além daquele grupo preciso e dos policiais que passam a investigar crimes que não demoram a acontecer.
Misericórdia torna-se uma trama policialesca, com doses de humor marcante e um sentido de suspense hitchcockiano a partir do momento em que o espectador torna-se cúmplice dos crimes cometidos e observa os personagens se enrolando cada vez na tentativa de encobrir suas faltas e erros. E é de onde menos se espera que surge a redenção do filme, a mão que ampara e se sacrifica em prol de algo maior (o amor?).
Guiraudie e seus personagens não temem cair no ridículo. No fundo, é justo nesta seara que o cineasta melhor trabalha. Longe de moralismos ou de uma correção comportamental, está menos interessado nos jogos de aparências que vão ruindo no decorrer da trama e mais no cinismo que governa os atos daquele tipos errantes.
Misericórdia (Misericórde, França/Espanha/Portugal, 2024)
Direção: Alain Guiraudie
Roteiro: Alain Guiraudie