Pensar a História indígena*
Em 2018, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, dos diretores João Salaviza e Reneé Nader Messora, venceu o Prêmio do Júri da mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes. Cinco anos depois, os cineastas voltaram à mesma mostra e conquistaram o Prêmio de Elenco para o conjunto de atores não profissionais de A Flor do Buriti. E não é apenas os prêmios na mesma ocasião o que aproxima os filmes. Ambos são trabalhos feitos em conjunto com a comunidade indígena da etnia Krahô, no Tocantins.
Casados, os dois cineastas possuem uma parceria que é mais do que íntima e profissional: desenvolveram uma vivência e cooperação artística com os indígenas daquela comunidade. Os frutos dessa relação são filmes muito coesos na sua proposta estética, ao mesmo tempo que caminham ao lado das cosmovisões nativas.
A Flor do Buriti, já em cartaz nos cinemas brasileiros, pode ser visto quase como uma continuação do longa anterior, não em termos narrativos, mas na conjunção entre forma e conteúdo. O filme foi o grande vencedor da última edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema, em Salvador, no mês de março.
Os diretores conversaram exclusivamente com A Tarde sobre sua frutífera parceria com os Krahô. “Havia um desejo de pensar a relação com a Terra nesses últimos 100 anos. Pensar como essa relação é atravessada pela violência porque a sociedade envolvente é muito violenta e sempre foi, desde a invasão. E era interesse filmar a resistência, mostrar como os Krahô se mobilizam e encontram novas estratégias reformuladas através dos tempos”, afirmou Messora.
Os diretores contaram também que o primeiro filme foi uma proposta deles para a comunidade, mas nessa segunda obra já havia uma motivação maior vinda dos próprios indígenas. “Para os Krahô, tudo era um grande mistério: o que é um filme, o que é o circuito do cinema, como é exibir um filme numa sala escura. Mas ao mesmo tempo eles entenderam que havia todo um potencial de usar essas imagens também como uma forma de solução cultural e de pacificação do não indígena”, pontuou Salaviza que, apesar de nascido e criado em Portugal, tem pai, avó, tias e familiares brasileiros.
A Flor do Buriti acompanha alguns moradores da comunidade Krahô Pedra Branca, no norte do Tocantins, no seus afazeres cotidianos. Ilda Patpro Krahô e Francisco Hyjnõ Krahô são uns desses indígenas, também colaboradores no roteiro do filme, que interpretam versão de si mesmo, na medida em que se movimentam pela aldeia e nas cidades vizinhas.
Passado e presente
Se em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos o dilema pessoal – e espiritual – do protagonista era o fio condutor da trama, agora, em A Flor do Buriti, os diretores e a comunidade investem em um sentido histórico: lançam luz sobre o passado daquelas pessoas a partir das memórias coletivas que se embrincam com a própria História do Brasil.
A narrativa volta no tempo para encenar um massacre que aconteceu na aldeia nos anos 1940, em que diversos nativos – incluindo aí o Cacique Balbino, importante liderança indígena – foram mortos a mando de fazendeiros da região. Há um flashback para retratar também a Guarda Rural Indígenas (Grin), força policial composta por nativos de diversas etnias, obrigados a constituir uma espécie de milícia à serviço do Governo Militar brasileiro.
Messora conta que parte dessas questões já estavam latentes anteriormente: “Nós queríamos filmar este massacre no Chuva é Cantoria, mas, na hora da montagem, percebemos que estava deslocado, que não pertencia àquele filme. Então deixamos em suspenso. Por outro lado, já havia dentro da comunidade um movimento para se pensar o que foi a Grin. Em 2019, houve uma grande reunião na aldeia onde juntamos os indígenas que haviam sido guardas rurais na época e eles puderam finalmente falar sobre aquela experiência. Ou seja, no decorrer do processo do filme, essas coisas foram acontecendo e dando força para a espinha dorsal da trama que é essa relação com a terra”, complementou.
Na atualidade do filme, os personagens chegam a viajar para Brasília em uma das muitas manifestações que trataram do marco temporal, usando imagens reais do evento. Dessa forma, este desejo de falar sobre a terra pode ser entendido aqui como algo que transcende o espaço físico da aldeia e dos lugares em que os Krahô viveram ao longo dos tempos. A terra tem sentido de existência e, diante das opressões sofridas no decurso do tempo, ganha dimensão de resistência.
Desconstrução coletiva
Os diretores falaram também sobre o processo singular de realização do filme, já que A Flor do Buriti possui um aspecto documental bem evidente e também um ritmo muito próprio que se coaduna com a própria relação que os indígenas possuem com o passar do tempo e com a natureza ao redor.
“Nós conseguimos com esse filme articular e incorporar todas essas camadas de realidade que foram surgindo e que não partiram só de nós, elas realmente foram atravessando nosso caminho. Eu sinto que uma parte do nosso trabalho é de perceber as coisas, de estar atento aos sinais. A gente nunca chega na aldeia com um roteiro pronto, é impossível fazer isso”, observou a diretora.
Nesse sentido, o processo de criação coletiva que se dá junto à comunidade é também uma forma de desconstruir modelos muito tradicionais de produção cinematográfica, na medida em que se busca forjar um sentido histórico para as vivências indígenas, também pouco usuais se colocadas nesses termos.
“O cinema acaba sendo um mediador, uma linguagem, uma forma de troca que nos permite intensificar relações e muitas vezes dar um propósito a elas. A gente percebeu junto aos Krahô que havia todo um território onde a gente poderia também desaprender tudo o que sabia para tentar fazer um filme. Isso é o que tem nos motivado a filmar”, arrematou Salaviza.
A Flor do Buriti (Crowrã, Portugal/Brasil, 2023)
Direção: João Salaviza e Renée Nader Messora
Roteiro: João Salaviza, Renée Nader Messora, Francisco Hyjno Kraho, Ilda Patpro Kraho e Henrique Ihjãc Krahô
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 07/07/2024)