Há de se saudar sempre um novo filme de um mestre como Ruy Guerra, ativo ainda aos 93 anos de idade. Não só por isso seu mais recente trabalho, A Fúria, dirigido em parceria com Luciana Mazzotti, ficou para o último dia de competição do Festival de Brasília, mas também por ser um óvni ali, um corpo estranho até mesmo dentro de sua própria filmografia e apesar das ligações diretas com outros títulos.
A Fúria resgata os personagens e os embates sociopolíticos já descortinados em obras anteriores do diretor, nomeadamente Os Fuzis (1964) e A Queda (1977). É, portanto, a formatação do que agora se torna uma trilogia, apesar deste último diferir bastante dos anteriores, tanto em termos estéticos, como na maneira de endereçar um discurso político muito direto e incisivo.
O tempo presente em que o filme foi feito, mais as contradições e arbitrariedades da vida política brasileira e seu circo de aberrações e infâmia dos últimos anos, moldaram uma narrativa que se distancia bastante de um sentido de cinema politizado que a turma do Cinema Novo fazia naquela época. A Fúria foi filmado em estúdio, os personagens interagem entre si dentro de salas com iluminação artificial, projetada como numa instalação, e a própria dramaturgia e o gestual dos atores são despudoradamente teatrais e farsescos.
Na trama, Mário (vivido aqui por Ricardo Blat, depois de ter sido interpretado nos longas anteriores por Nelson Xavier) retorna do mundo dos mortos para se vingar de Salatiel (Lima Duarte), agora um influente e desprezível político, junto com seu comparsa Feijó (Daniel Filho). Do lado da esquerda progressista, a deputada Petra (Grace Passô) pretende confrontar os poderosos e subir ao poder.
Estamos no terreno dos jogos de influência e das articulações políticas de cada lado, sempre expostos do modo mais explícito e carregado possível. Não há lugar para sutilezas aqui. Os personagens explicam seus panos e anseios a todo instante – em muitos momentos conversando sozinhos com o espectador –, tudo está às claras e é jogado na cara do espectador sem meias palavras.
É como se, chegado nessa idade – o cineasta, nascido em Moçambique, mas radicado no Brasil desde o final dos anos 1950, completou 93 anos –, Guerra não tivesse mais tempo e disposição para alegorias ou entrelinhas. Com isso, o filme até pode estabelecer uma forma de diálogo direto com o público, mas não deixa de cair em certo panfletarismo de esquerda, tornando-se também um tanto óbvio ao acessar os lugares comuns do discurso politizado e militante.
A tentativa de se inserir na pautas minoritárias da atualidade é uma desses alvos fáceis. Além da personagem de Passô, surgem em cena uma líder paramilitar transgênero, vivida por Lux Nègre (ambas mulheres negras), e também a neta de Salatiel, a ovelha desgarrada da família e contrária às artimanhas do avô, interpretada por Simone Spoladore. Um trio feminino que busca reforçar a papel crescente das mulheres nos campos de poder, apontando para uma nova ordem mundial – ou apenas feito para agradar certa parcela do público progressista. Soma-se à isso o indígena que se torna espécie de guru espiritual de Mário no seu retorno ao mundo da sujeira e da vingança. Coroa o paroxismo o retrato de caricatura do líder de extrema-direita que não só veste-se e fala como Bolsonaro, mas carrega uma suástica estampada no peito. Mais óbvio, impossível.
Além dos cenários artificiosos e de um texto expositivo ao extremo, proferido em meio a esse cenário quase distópico, a câmera do filme ainda faz questão de, na sua inquietude tremeliquenta, abusar de enquadramentos oblíquos e tortos, como a acentuar o sentido de deslocamento no espaço-tempo do filme ou denotar um caráter de delírio e pesadelo nauseante. Na maior parte das vezes, no entanto, é apenas irritante na sua tentativa de parecer provocador e anárquico. É de fato um filme furioso, virulento e que não poupa ninguém de suas ideias, inclusive o espectador, refém de estripulias narrativas pueris. Tudo isso em prol de uma leitura política de país que apenas corrobora uma visão de mundo um tanto simplista e direcionada, buscando angariar atenção e apoio dos convertidos, mais do que lançar-se a uma construção propositiva do Brasil e de suas constantes e aterradoras contradições.
A Fúria (Brasil, 2024)
Direção: Ruy Guerra e Luciana Mazzotti
Roteiro: Ruy Guerra e Luciana Mazzotti