Secularismo mágico*
Considerado por muitos como obra máxima da literatura na América Latina e um dos mais importantes livros hispânicos de todos os tempos, Cem Anos de Solidão foi longamente cortejado para ser adaptado no cinema. Prêmio Nobel de Literatura, o autor colombiano Gabriel García Márquez, em vida, nunca permitiu que isso fosse feito, dada a complexidade narrativa de uma trama que conta a história de sete gerações de uma família.
A Netflix foi quem conseguiu tirar o projeto do papel, mas precisou seguir diretrizes imprescindíveis para a realização: a série foi inteiramente filmada na Colômbia e falada em espanhol caribenho (e também na língua indígena guajira), contou com grande parte do elenco e da equipe técnica proveniente do país de origem de Gabo. Além disso, a série mantém fidelidade em relação à trama nos pormenores e desdobramentos narrativos que marcam a incrível saga da família Buendía.
Há, é claro, algumas poucas alterações em relação ao material original. Mas é certo que Cem Anos de Solidão ganhou uma versão audiovisual digna de uma obra de tal porte. É competente não apenas em termos de produção e reconstrução de um universo tão particular e reconhecível na paisagem sul-americana, mas também fiel ao espírito imaginativo que marca o Realismo Fantástico, onda que impulsionou a produção literária na América Latina na segunda metade do século XX.
O livro de Gabo é um dos maiores representantes dessa corrente literária e sua transposição para as telas merecia dedicação e robustez. Dirigida pela colombiana Laura Mora e pelo argentino Alex García López, a série completa possui 16 episódios, dos quais metade estreou na plataforma neste mês de dezembro – a segunda parte ainda não tem previsão de chegar à Netflix.
O projeto também teve apoio e supervisão dos herdeiros de García Márquez, especialmente do seu filho, o também cineasta Rodrigo García que, no entanto, aparece aqui apenas como produtor executivo. Trata-se de um investimento enorme não só em termos de amplitude de produção, mas também como reconhecimento para um conteúdo de enorme valor cultural para a Colômbia e para a América Latina.
Estirpe longeva
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. As primeiras e memoráveis linhas do livro, assim como outros momentos clássicos da história e sua gama de personagens idiossincráticos, ganham vida com resplendor e atenção aos detalhes.
Não é uma tarefa fácil porque a obra é conhecida pelos seus muitos personagens que, na linhagem familiar dos Buendía, acabam repetindo os nomes de seus pais e avós, em um labirinto genealógico fácil de se perder. Mas o formato alongado da série ajuda muito para que cada personagem ganhe o destaque merecido, o que amplia o escopo temático da obra ao abordar temas como obsessão, envelhecimento e, principalmente, o sentido de família.
Os primeiros episódios dão conta de revelar não só a criação da mítica aldeia de Macondo, mas também a consolidação da estirpe dos Buendía que não para de crescer. Os primos José Arcadio e Úrsula Iguarán (vividos na juventude por Marco Antonio González e Susana Morales) se casam e empreendem uma travessia pela selva com outros aventureiros em busca do mar, mas desistem depois do insucesso da empreitada e decidem fundar, no meio do nada, a vila que será palco dos acontecimentos da trama.
O nascimento dos filhos do casal se sucede e cada um deles torna-se especial na suas particularidades. José Arcadio Jr. (Andrius Leonardo) descobre o amor bem jovem e se distancia da família, enquanto Aureliano (Claudio Cataño) se apega ao laboratório do pai, sem interagir muito com outros de sua idade, até se tornar figura essencial no ramo militar e na guerra civil vindoura. As jovens e belas Amaranta (Loren Sofía) e a misteriosa sobrinha-neta Rebeca (Akima) complementam o lado feminino da família na busca por casamentos e alianças familiares que façam avançar a linhagem.
A série é hábil não só em descortinar o desabrochar dessa família – e isso é apenas uma parte do que está por vir –, mas também a evolução da vila de Macondo, incialmente um ajuntamento de casas simples de barro, o que vai se ampliando com a chegada de novas gentes e também pela passagem dos exóticos ciganos a trazerem consigo os mais fabulosos inventos e novidades de outras paragens. O cigano Melquíades (Moreno Borja) vai se tornar amigo pessoal de José Arcadio (Diego Vásquez na fase adulta), iniciando-o nas práticas da alquimia, deixando o patriarca obcecado pelos poderes da ciência.
Por outro lado, Úrsula (Marleyda Soto, adulta) precisa ser o elo firme que sustenta a família, não apenas financeiramente com o seu comércio de caramelos, como frente aos desafios de educar uma família de pessoas com humores tão distintos. Ela é uma espécie de espinha dorsal do lar, com sua mão de ferro e seu cuidado de mãe, e que sustenta a narrativa da série nessa primeira temporada.
Maravilhamentos
Outra grande qualidade da obra televisiva, também explicada pelo amplo investimento financeiro e técnico feito pela Netflix, é o apuro visual de Cem Anos de Solidão. As paisagens do interior colombiano, com suas matas e serras, e a caracterização dos personagens, na sua evolução temporal, é um prazer para os olhos.
Fora isso, a série também representou com muita sagacidade a dimensão mágica que existe nessa história. Não se trata de abraçar a fantasia como um todo, mas de perceber momentos e situações fabulares, tratados com naturalidade pelos personagens – é especial o episódio em que a vila é acometida pela praga da insônia e todos deixam de dormir por um bom tempo –, como se Macondo fosse um lugar de possibilidades muitas e irreais, ainda que seja um reflexo das questões sociopolíticas da Colômbia.
Há espaço até mesmo para ampliar o universo do escritor, como o surgimento da personagem-título do famoso conto A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada, aparecendo aqui como uma jovem obrigada a se prostituir pela tia e que cruza o caminho de Aureliano Buendía.
O amor, a guerra, a passagem do tempo, a modernidade, a evolução do mundo e as falhas e fragilidades humanas, todos esses temas estão presentes aqui, diluídos nas muitas tramas que se imbricam na história. Agora, quase 60 anos depois do seu lançamento literário, Cem Anos de Solidão pode ser descoberto por uma nova geração e também desfrutado com satisfação pelos muitos adoradores da obra máxima de Gabo.
Cem Anos de Solidão (Cien Años de Soledad, Colômbia, 2024)
Direção: Laura Mora e Alex García López
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 29/12/2024)