Cinderela partida
O mundo dos desajustados e dos socialmente desprezados interessa muito ao cinema de Sean Baker, especialmente os trabalhadores do sexo. Em Tangerine (2015), ele filmou a história de duas amigas transexuais com problema com seu cafetão; em Red Rocket (2021), um ex-ator pornô fracassado voltava para casa para tentar refazer sua vida.
Seu mais novo filme, Anora, retoma o tema ao focar na história de uma jovem que trabalha como stripper em uma casa de shows alto nível; eventualmente, ela acerta programas com seus cientes fora dali. Em um dia casual, por saber falar um pouco de russo, ela precisa atender um jovem daquela nacionalidade, playboy cheio de dinheiro e com pouco conteúdo e juízo na cabeça.
Acertam de se encontrar na casa que os pais do garoto mantêm nos Estados Unidos. Daí começa uma trama de envolvimento sexual e financeiro, quase inocente nesse acordo que beneficia a ambos: ela faz o seu trabalho com afinco e sem nunca reclamar, a fim de agradar o rapaz; ele, ávido por sexo e com os hormônios em ebulição, esbanja o dinheiro dos pais sem pensar duas vezes.
Os encontros se transformam em uma proposta de namoro e, em uma viagem para Las Vegas, os dois resolvem se casar – mais clichê, impossível. Ani (Mikey Madison), como prefere ser chamada, envereda cada vez mais pelo sonho do homem rico e apaixonado capaz de lhe salvar de uma vida de privações e do trabalho ingrato. E Ivan (Mark Eydelshteyn) acredita realmente ter encontrado a mulher de sua vida, ou apenas está obcecado por essa jovem linda que lhe provém de companhia e bom sexo.
Mas quando a notícia chega aos ouvidos dos pais do garoto, o conto de fadas desanda totalmente. Entra em cena as oligarquias familiares e sua rede de poderes e manutenção da status quo. Educado para assumir os negócios da família na Rússia – que o filme não explicita exatamente o que é, apenas brinca com o fato de ser algo pesado ligado à máfia, outro lugar comum da representação do russos perigosos e vilanizados –, é inadmissível que Ivan se case com uma prostituta norte-americana.
Inicia-se, portanto, uma corrida contra o tempo para que eles anulem o casamento, na medida em que os pais do garoto, que estão vindo da Rússia às pressas, mandam os capangas e guarda-costas da família à cata dos dois infratores. Um desses homens é um líder religioso que intervém no caso, fazendo supor mais um envolvimento institucional forte aí, dessa vez o catolicismo ortodoxo.
Ingenuidade
Desde que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes do ano passado, Anora vem sendo apontado como um dos grandes favoritos nesta temporada de premiações. Tem seis indicações ao Oscar, incluindo as principais categorias (filme, direção, roteiro, atores).
O filme parece ter crescido muito com esse prêmio porque mesmo durante o festival francês ele não era sequer considerado um dos melhores filmes e favorito à Palma – azar da obra-prima iraniana A Semente do Fruto Sagrado que ficou apenas com um prêmio especial.
Anora possui muitas qualidades narrativas. Tem ritmo, muito por conta de uma montagem bem resolvida – assim como a direção e o roteiro, a edição do filme é assinada pelo próprio Sean Baker. É também dirigido com competência e possui um elenco afiadíssimo, nada moralistas nas cenas de sexo, especialmente por tratar de um lugar fácil de explorar que é o nu feminino – Madison parece muito à vontade em todas as suas cenas mais explícitas.
Mas o maior problema do filme é apostar na ingenuidade como motor de afeição entre os personagens. Da parte de Ivan, é até compreensível que o garoto imaturo e inconsequente tenha se apaixonado por aquela beldade. Mas é difícil comprar a ideia de que Ani, trafegando pelo submundo da luxúria e dos encontros com outros homens poderosos e ricos, tenha acreditado tão inocentemente na concretude daquele casamento.
Parte da narrativa do filme passa a se concentrar na busca desenfreada a Ivan, que foge de casa quando os capangas dos pais chegam, enquanto Ani fica sob a guarda dos mal encarados. O filme entra em um vórtice um tanto caricato e caótico que passa a gerir a trama, em direção a um final nada difícil de prever, enquanto assistimos às trapalhadas e imaturidades de quase todos ali.
Encontro de iguais
Digo quase porque há um personagem que escapa do óbvio. Um dos capangas, Igor (o ótimo Yura Borisov), está ali apenas como cumpridor de regras. Ele precisa acalmar Ani na fúria que toma conta dela quando eles invadem a casa dos recém-casados. Apesar da gritaria e das ameaças, o filme tem até um quê de comédia de erros que passa a dominar a narrativa.
Mas mesmo nesses momentos, Igor age com impassibilidade, sempre sério e até mesmo muito respeitoso. Parece ser um cara bom que trabalha para os maus. Ele tem consciência do que se passa ali porque, assim como o próprio espectador logo pode prever, não parece haver muita chance para que aquele casamento dê certo.
Mais do que isso: ele reconhece em Ani uma igual. São ambos pertencentes a uma classe social e econômica inferior, estão à serviço dos burgueses e poderosos; têm de fazer as vontades dos filhos mimados do chefe e, em muitos casos, consertar as burradas que eles cometem. Vendem o corpo e a força de trabalho, mas queriam estar em outra posição.
Na ótima cena final do filme – nada de spoiler por aqui, fiquem tranquilos –, no entanto, fica claro que a própria Ani não só não se dá conta disso, como também busca exercer seu poder sobre os homens tendo o sexo como arma. Ela não parece entender o lugar das hierarquias e, sobretudo, o poder dos afetos, aqueles moldados pela força dos encontros mais genuínos.
Anora (Estados Unidos, 2024)
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 26/01/2025)