Grand Tour / Entrevista com Miguel Gomes

Jornada Ásia adentro*

Edward (Gonçalo Waddington) é um funcionário público da Coroa Britânica no início do século passado. No continente asiático, ele começa a pular de país em país, com destino final ignorado (seria ele um espião?). Mais do que em uma missão diplomática, logo descobriremos que ele está, na verdade, fugindo de sua noiva Molly (Crista Alfaiate), com quem prometeu se casar, mas agora não quer mais encontrá-la.

A moça está no encalço do rapaz e o que vemos em Grand Tour são as peripécias, em separado, desses excêntricos personagens em meio a paisagens inóspitas pelos confins de uma Ásia misteriosa e maravilhosa. Com esse enredo, o diretor português Miguel Gomes venceu o prêmio de Direção no Festival de Cannes do ano passado. O filme estreia agora diretamente na plataforma de streaming da MUBI no Brasil.

Gomes conversou com A TARDE sobre o filme e contou que sua principal inspiração foi um livro de viagens chamado The Gentleman in the Parlour, de Somerset Maugham (não publicado no Brasil).

“Há um momento no livro em que alguém chega para Somerset e diz: ‘Vou contar uma história pouco antes do meu casamento’. Esse cara era Edward e sua esposa era Molly. Ao mesmo tempo, o livro era um diário de viagem com a jornada de Somerset pelo Sudeste Asiático. Então eu pensei se não poderíamos fazer as duas coisas ao mesmo tempo”, explicou Gomes.

E assim nasceu Grand Tour. Enquanto observamos as movimentações e encontros dos protagonistas com diferentes personagens, o filme também reserva tempo para mostrar imagens documentais, feitas na atualidade, do cotidiano de muitas dessas cidades por onde a narrativa segue – começando em Mianmar e passando por Tailândia, Vietnã, Filipinas, China e chegando até o Japão.

É quase como se houvesse dois filmes ali, um sobre o casal nesse jogo de gato e rato, e um outro que está interessado em registrar as cidades, seu povo e seu dia a dia. “A gente queria fazer uma espécie de viagem ao espaço, às regiões atravessadas pelos personagens e ao mesmo tempo contar a história desses personagens em outra época, em 1918, em estúdio numa Ásia falsa que nunca existiu, mas que o cinema pode criar. E ver o que essas duas coisas tão diferentes podem dar uma à outra. Como a ficção feita no estúdio pode contaminar o que você vê no mundo hoje?”, interrogou o diretor.

Olhar estrangeiro

O filme se estabelece, portanto, como um olhar estrangeiro sobre paisagens e culturas desconhecidas, captadas com a mesma curiosidade que os próprios personagens experimentam ao chegar em cada país diferente, mas sem o vício do exotismo exploratório – faz lembrar em muito o clássico Sem Sol, de Chris Marker, também filmado no Oriente.

O próprio diretor revelou que ele não pretendia fazer uma jornada de descobertas e grandes aprendizados: “Este filme é sobre pessoas que não aprendem. Elas estão em lugares diferentes do que estão acostumadas, veem coisas muito diferentes da sua própria cultura, há encontros constantes com a realidade que os cerca. E eu não sou uma exceção a esses personagens. Estive lá, em todos esses países, mas não sou uma pessoa de dentro”.

Apesar de ser uma produção portuguesa, os personagens são britânicos em trânsito pelo continente asiático (falam também em português). Mas é curioso que os narradores do filme – recurso muito utilizado e que faz avançar a trama a partir do que é contado em off – mudam a cada país, falando inclusive em língua local. Ou seja, é como se essa instância narradora fosse também um olhar estrangeiro que observa e acompanha os descaminhos dos personagens.

O filme brinca constantemente com esse viés da percepção do outro, do diferente, do estrangeiro, colocando o espectador também nessa posição. Mas Grand Tour possui ainda um grande encantamento pela observação documental daquelas paisagens, dando ao filme um sabor de diário de viagem, misturando passado e presente.

“Para ser honesto, não posso dizer que capturei algo interessante a dizer sobre aquilo. Eu não tenho nada a dizer. Eu simplesmente vou lá com a câmera e fotografo coisas que considero bonitas, graciosas ou divertidas, de acordo com meus próprios padrões. E tento com isso compartilhar com as pessoas essa graça pelas coisas bonitas que eu descubro”, defendeu Gomes.

Sobre a responsabilidade de ser um cineasta europeu filmando em países que foram antigas colônias, Gomes pontuou: “A relação que existe entre quem está filmando e quem está sendo filmado deve ser sempre justa. E isso significa que, quaisquer que sejam suas ideias e emoções em relação a elas, você precisa ser justo”.

Guerra na Bahia

Gomes acabou falando também sobre seu próximo projeto que muito diz respeito a nós, baianos. O diretor está trabalhando na adaptação de Os Sertões, o clássico livro-reportagem de Euclides da Cunha sobre a Guerra de Canudos, que teve lugar no sertão baiano em fins do século XIX. “É um filme de guerra, um estranho filme de guerra. É sobre o lugar, sobre as pessoas que vivem neste lugar e sobre a guerra que aconteceu ali”, definiu o cineasta.

O filme, que até então tem o título de Selvageria, começou a ser escrito por Gomes em 2016, na expectativa de ser seu próximo filme, mas outros projetos tomaram à frente (antes de Grand Tour, o cineasta lançou Diários de Otsoga, feito durante a pandemia).

O diretor pontuou que existe, com esse projeto, o mesmo senso de curiosidade e vontade de descoberta ao partir do zero: “Quando eu comecei a entrar no processo de escrita do filme, eu não sabia nada sobre isso”. Se para o público brasileiro essa pode ser uma trama já muito conhecido, espera-se que um olhar estrangeiro possa revelar mais nuances sobre o ato de resistência encabeçado por Antônio Conselheiro.

Grand Tour (Portugal/Itália/França/Alemanha/Japão/China, 2024)
Direção: Miguel Gomes
Roteiro: Miguel Gomes, Telmo Churro e Maureen Fazendeiro, Mariana Ricardo e Babu Targino

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 18/04/2025)

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