CineFuturo 2011 – Parte II

Um das grandes atrativos do CineFuturo este ano foi a mostra dedicada ao cineasta italiano Bernardo Bertolucci, grande homenageado do evento. Minha ideia era fazer dois posts sobre os filmes vistos, mas a vida tá corrida e o tempo não para. Vai tudo num só:

Assédio (Besieged, Itália/Reino Unido, 1998)

Assédio possui todas as boas características do cinema de Bertolucci: o tom politizado, o envolvimento amoroso nunca idealizado, mas muito verdadeiro, a narrativa entrecortada e ágil (que lembra demais o cinema de Jean-Luc Godard, mas bem menos prolixo). No entanto, existe um incômodo pela forma como o roteiro parece expor os dramas de seus personagens de maneira um tanto frouxa, que dificulta um tanto em fazer crer em suas intenções e sentimentos. A protagonista Shandurai (Thandie Newton) é uma refugiada africana na Itália depois que seu marido foi preso por questões políticas e trabalha na casa de um rico músico (David Thewlis) que se apaixona perdidamente por ela.

Quando numa briga, por exemplo, ele assume seu amor por ela, cena e texto soam deslocados, quase que emperrado. Na mesma cena, ela muda de assunto imprevisivelmente e pede para que ele ajude-a a tirar o marido da prisão, em mais um momento deslocado. Outras cenas do filme pecam por esse mesmo constrangimento, embora a vantagem é que Bertolucci nunca se mostra óbvio. A veia politizada do filme surge na forma como expõe os problemas políticos dos países africanos e os governos despóticos que ainda imperavam em alguns deles, mas sem nunca especificar um em questão. Porém, importa mais ao cineasta o dilema dessa personagem dividida entre a luta em reencontrar o marido e a nova paixão pelo músico. O final ambíguo só reforça o tom provocador do filme.

O Conformista (Il Conformista, Itália/França/Alemanha Ocidental, 1970)

O Conformista pode ser visto como uma viagem alucinante na vida de um homem que perdeu a perspectiva de levar uma vida comum, passando a trabalhar para o regime fascista italiano sem necessariamente ser um partidário fervoroso; são somente as forças das circunstâncias, suas motivações não têm nada de ideológicas. Marcello (Jean-Louis Trintignant) relembra sua trajetória durante uma estranha viagem de carro, quando sabemos que ele recebeu a missão de assassinar um antigo professor seu que fugiu e se refugiou na França, e passa a relatar desde o seu envolvimento com o partido, como também o casamento com sua atual esposa, a fútil e expansiva burguesa Giulia (Stefania Sandrelli), além de sua relação distante com a família e a ausência de fé religiosa.

Tudo na vida dele é tratado com frieza. Bertolucci aproveita ao máximo a soberba fotografia de Vittorio Storaro que contrasta cores quentes e frias compondo imagens fortes, cheias de vida, encontrando oposição na passividade total de seu protagonista. A montagem ágil e inteligente já se configura, nesse momento, como uma marca do autor, em que cada corte guarda uma surpresa no sentido de que ele nunca revela o óbvio, além das narrativas paralelas da própria história. Talvez o melhor filme de Bertolucci, O Conformista se arma de um rigor formal classudo para revelar um homem perdido no tempo. O final, ao se inscrever já na decadência do fascismo italiano, aponta para uma nova forma de encarar a sociedade, e Marcello está pronto a aceitá-la sem contestações.

O Céu que Nos Protege (The Sheltering Sky, Reino Unido/Itália, 1990)

Eu já admirava muito esse filme e numa revisão ele conseguiu crescer já que é possível se deter melhor na complexa relação do casal Kit (Debra Winger) e Port (John Malkovich), em viagem pelo norte da África, acompanhados pelo amigo não muito querido George (Campbell Scott). Quando ela, no início do filme, estabelece a diferença entre o turista e o viajante (o primeiro, assim que chega, quer logo ir embora, enquanto o outro pode nunca mais voltar), já se prevê a experiência marcante pela qual os personagens irão passar, embora o tom do filme nunca seja solene. O casal em crise pouco faz para reverter essa situação, eles se desentendem a todo momento (o que faz Port se encontrar com uma prostituta na mesma noite em Kit e George transam), muito embora eles continuem juntos, buscando um no outro uma certa cumplicidade.

Eles parecem saber exatamente isso que se passa, o que fica evidente na sequência em que eles se encontram num penhasco (a mais bonita e também ácida cena do filme). Bertolucci não nos poupa das intempéries do destino, tendo em Kit a personagem que buscará de forma surpreendente superar a lacuna de amor correspondido, se perdendo ela mesma na paisagem africana. Mais uma vez, Vittorio Storaro nos entrega imagens de uma beleza gráfica pela aridez da África. Tão árido quanto os relacionamentos mal-resolvidos de seus personagens, apesar dos desejos que existem.

Beleza Roubada (Stealing Beauty, Itália/França/Reino Unido, 1996)

O aflorar da sexualidade pelas lentes de Bertolucci. Talvez essa seja uma tentativa simplista de definir o filme, mas é uma marca visível trazida pela personagem Lucy (Liv Tyler), americana filha de mãe italiana, que retorna à Itália onde passou a infância e adolescência. O reencontro com os tios, primos e primeiros amores reacende desejos latentes, intensificados ainda mais pela virgindade anunciada da protagonista. Toda a atmosfera sexual ronda o filme, pelo próprio caráter libertário que existe naquela família (fala-se de sexo com a maior naturalidade). Para além disso, há as relações delicadas dela com a própria mãe, que cometeu suicídio, e a tentativa de saber a verdade sobre seu verdadeiro pai que nunca conheceu.

De qualquer forma, o filme é cheio de vigor e de uma tensão sexual incrível. Liv Tyler, luminosa, esbanja sua beleza virginal. Bertolucci filma de forma mais clássica, um tanto diferente de seus filmes mais conceituais, sem imprevisibilidades técnicas (em especial através de uma montagem totalmente linear). O resultado revela um rito de passagem para a idade adulta dos mais bonitos, sincero com os dramas e dilemas emocionais de seus personagens, apontando para a necessidade de se desnudar para se (re)descobrir.

La Luna (Idem, EUA/Itália, 1979)

Se no início do filme há a impressão de que Bertolucci quer levantar uma bandeira denunciando o uso das drogas, vamos logo perceber que seu interesse é outro; caso contrário, não estaríamos falando de um dos mais provocativos cineastas italianos. Caterina (Jill Clayburgh) é uma cantora lírica em Nova York que, depois da morte acidental do marido, precisa criar sozinha o filho Joe (Matthew Barry), problemático e inconsequente, que logo descobre o vício pela heroína. As coisas tomam um rumo surpreendente quando se desenha uma relação incestuosa entre mãe e filho, numa tentativa dela em acalmá-lo em seus estados de euforia, já que ela é pega de surpresa com a situação (inclusive, a cena em que ela flagra pela primeira vez o garoto injetando a droga é sensacional por aquilo que nos faz crer que é, mas que se revela muito mais preocupante).

Mesmo assim, o filme dá muitas voltas para chegar num terço final em que o drama inicial parece perder lugar para outras questões, envolvendo a paternidade do garoto. Não existe uma preocupação do filme em nos mostrar a resolução do vício dele (como seria até uma cobrança descabida pois o filme não se pretende a um estudo de problemáticas sociais, muito menos de lição de moral), mas a narrativa aponta para um final que se abre demais. Nada contra eles, desde quando bem contextualizados na obra. La Luna revela o mesmo Bertolucci provocador e ácido, inserido aqui num contexto novo, mas que peca pela resolução desencontrada da história.

O Último Imperador (The Last Emperor, China/Itália/Reino Unido/França, 1987)

Filme mais quadrado e convencional de Bertolucci (e isso não é pouco se pensarmos nas provocações éticas e estéticas de vários de seus ftrabalhos), O Último Imperador não deixa de ter aquele ar de obra feita por encomenda, muito embora a mão do diretor se revela no grande apuro visual para contar a história de Pu Yi, último imperador da China, levado ao trono com apenas 3 anos de idade e obrigado a viver enclausurado na Cidade Proibida depois de instaurada a República no país. O filme ainda aborda a sua captura pela União Soviética, quando foi exilado na Sibéria como preso político. É aí que o filme se inicia, fazendo seu personagem rememorar sua trajetória de vida.

A pouca aproximação com a história da China pode dificultar o acompanhamento de todas as reviravoltas do filme (a obra, no pior sentido, ganha aqui ares de “filme histórico”, que o deixa muito preso a um certo padrão documental dos fatos). No entanto, Bertolucci contrapõe isso criando um espetáculo visual pomposo e grandiloquente, se beneficiando dos ícones da cultura oriental e da representação de um personagem de linhagem real. Vale destacar como as cenas vão, cronologicamente, perdendo sua coloração viva e os planos mais abertos do início para ganhar mais densidade com uma luz mais fria e planos fechados ao final, proposta condizente com a própria trajetória de seu protagonista.

Ranking Bernardo Bertolucci

Depois dessa maratona, uma lista (que não ofende ninguém) das minhas preferências dentro da filmografia do cineasta:

O Conformista

O Último Tango em Paris

O Céu que Nos Protege

Os Sonhadores

Beleza Roubada

Antes da Revolução

O Último Imperador

La Luna

Assédio


6 thoughts on “CineFuturo 2011 – Parte II

  1. Então, do Bertolucci adoro O ÚLTIMO TANGO EM PARIS, OS SONHADORES e 1900. O CONFORMISTA e ANTES DA REVOLUÇÃO são ótimos, e O ÚLTIMO IMPERADOR é mesmo um bom drama histórico, mas excessivamente quadrado, pouco condizente com a filmografia do diretor. BELEZA ROUBADA eu vi há muito tempo, precisava rever…

  2. Sempre prezo a palavra de admiradores de diretores quanto leio comentários porque eles entendem bem sua obra, seus temas, o contexto, toques pessoais, etc. No caso de Bertolucci, várias coisas ficaram além da minha visão porque não consegui ver nada de especial em Conformista, Céu e Imperador (fora o visual), mas que diabos, sempre estou disposto a absorver opiniões alheias mais bem informadas e rever os filmes.

  3. Antonio, gosto muito do Bertolucci, principalmente quando ele se mostra mais atrevido e estimulante em seus filmes.

    Wallace, Novecento eu acabei perdendo na mostra, mas gosto de todos os que você citou, com a mesma ressalva a O Último Imperador. Beleza Roubada, visto pela primeira vez, bateu muito forte, principalmente pela presença luminosa de Liv Tyler.

    Gustavo, esse é um exercício muito interessante, se interessar mesmo pelos filmes e realizadores que à primeira vista não nos apaixonam. Mas digo que no caso do Bertolucci a prestreza visual está a serviço de história poucas vezes óbvias e das mais provocadoras.

  4. neste blog tem alguma postagem sobre "The Dreamers"?? eu não encontrei…
    É um filme maravilhoso para quem gosta de cinema, um dos meus preferidos do Bertolucci…

    blog muito bom. Parabéns.

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