Os cineastas Karin Aïnouz e Marcelo Gomes nos dão uma história das mais melancólicas do cinema nacional recente; outras são de responsabilidade dos próprios realizadores. Marcelo fez o árido Cinema, Aspirinas e Urubus, e Karin chegou perto da obra-prima com o sensível O Céu de Suely.
Além de extremamente interessantes, as escolhas estéticas do filme se mostram bastante corajosas. Um personagem que nunca vemos narra, em off, suas viagens pelo sertão onde precisa investigar as possibilidades geográficas da transposição de um rio por aquelas terras (referência gritante ao duvidoso projeto que cerca o Rio São Francisco).
Nessa fala, quase como um grande monólogo ou como um diário de viagem, o personagem expõe as dores da paixonite aguda depois que foi deixado pela mulher amada (referida sempre como “a galega”), sem que nunca saibamos o porquê. Nada no filme é explícito. A narrativa segue como uma profusão de sentimentos que afloram do personagem, sempre em estado de solidão e de total vazio, embalada pela vastidão das imagens sertanejas que ele encontra pelo caminho.
A voz que narra pertence ao ator Irandhir Santos, e seu trabalho revela uma sensibilidade imensa, pois constrói seu personagem somente com a entonação vocal, responsável por nos dar conta dos sentimentos difusos desse homem em sofrimento.
As imagens granuladas, além de reforçar seu caráter “amador”, que seriam captadas pelo próprio protagonista, também podem ser lidas como representação de seu estado de espírito, um apaixonado que foi largado pela mulher amada, cuja alma se encontra em momento de desarranjo. Tudo é filmado com uma vagarosidade latente, e as imagens persistem na tela, como que reforçando essa atmosfera de melancolia eterna.
Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo se constitui como uma experiência das mais bem-vindas e gratificantes, tipo de coisa da qual o cinema brasileiro precisa muito atualmente, essa coragem de se reinventar e investigar as fronteiras da própria linguagem audiovisual, essa tentativa de alcançar o novo e de fornecer ao expectador momentos marcantes.
PS: em conversa com o público depois da sessão, o diretor Marcelo Gomes falou que o filme estava em processo de realização há mais de 8 anos. Curioso é que a produção seguiu o caminho inverso. Primeiro eles captaram as imagens para depois construírem e solidificarem um roteiro. Muito bom.
Curtas-metragens:
Das seleções de curtas, pouquíssima coisa eu conferi, mas que possuem sua curiosidade:
Zigurate (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Carlos Eduardo Nogueira
Filme construído a partir de tecnologia digital, mas com atores “de verdade”, Zigurate se trata de uma grande alegoria sobre a distinção de classes sociais com uma ácida crítica aos mais abastados da sociedade, aqueles que vivem nas alturas (seja nos prédios ou na hierarquia social). (O filme foi apresentado junto do documentário Um Lugar ao Sol, formando uma curiosa dobradinha). O curta mostra como essa mesma classe alta produz, a seu modo, sujeira e podridão, representado através de fezes, urina, sêmem. A escatologia em alta serve para nos lembrar que necessidades fisiológicas e impulsos sexuais (que nos aproximam do animalesco) são processos naturais. Uma pena que o curta vai se perdendo a partir de sua metade e parece não saber o que fazer com seus personagens, muito menos como concluir sua narrativa. O recado já tinha sido dado.
Recife Frio (Idem, Brasil, 2009)
Dir: Kleber Mendonça Filho
Recife, um das cidades mais quentes do Brasil, passa a apresentar uma onda de temperaturas baixíssimas que mudam completamente a rotina de seus moradores. A partir dessa premissa fantástica (em ambos os sentidos), o ex-crítico de cinema Kleber Mendonça Filho constrói um falso documentário em que uma equipe de TV argentina visita a capital pernambucana para investigar o processo. O curta apresenta uma proposta documental com excelente pesquisa e construção de imagens, além de render boas gargalhadas. Seria o caso, por exemplo, de uma família de classe alta cujo filho trocou de quarto com a empregada porque as instalações nos fundos da casa e sem ventilação são mais aconchegantes, enquanto a suíte com vista para o mar tenha se tornado geladíssimo. É nesse sentido que o curta alfineta a sociedade e apresenta, através da alegoria, o que o ser humano pode ter de mais frio e distante, independente da temperatura que faz em sua cidade.
Que vontade de conhecer o cinema de Ainouz. Até hoje não vi nada dele, mas só porque SUELY não passou aqui na cidade.
VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO está em cartaz na minha cidade há 3 semanas, e ainda não tomei vergonha na cara e fui ver… vamos ver se faço isso até quinta, pra não correr o risco de vê-lo ser tirado de cartaz… mas tenho boas expectativas, principalmente por ter gostado bastante do que vi do Aïnouz e do Gomes.
Ahh, tenho muita vontade de assistir "Viajo porque preciso, volto porque te amo", mas ainda não apareceu nem o cheiro por aqui.
Muito bacana esse festival!
Também tô louco pra ver Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo… teu review aumentou ainda mais minhas expectativas.
Gustavo, tu não viu nada do Aïnouz ainda? Corre pra ver O Céu de Suely porque é muito, muito bom. O cara sabe o que faz e tem uma visão de cinema muito particular, além de se arvorar por propostas bem diferentes da convencional.
Wallace, não se arrisca, não! Eu tive de ir a Salvador para ver, caso contrário seria impossível. E vale muito a pena, é uma experiência única.
Victor, assim que você tiver oportunidade, veja sem falta. Vale mesmo a pena.
Que bom que consegui te empolgar, Bruno, e o filme merece muito ser visto.