A falta que você me faz*
Pedro Diógenes faz parte de uma geração inquieta de cineastas cearenses que desenvolveram, nos últimos anos, um cinema disruptivo e de investigação de linguagem que encontrava nas produções de baixo orçamento a liberdade criativa para ousar e fugir dos padrões narrativos. Formou, ao lado de Guto Parente, Luiz e Ricardo Pretti, o coletivo Alumbramento, com quem fez filmes arrojados como Estrada para Ythaca, Os Monstros e Com os Punhos Cerrados.
Agora, em carreira “solo” (mesmo que continue contando com a colaboração dos antigos parceiros), investe em um tipo de cinema que se afasta de certa proposta mais onírica e/ou experimental para fincar os pés no realismo-naturalismo. É o caso de seu mais novo filme, A Filha do Palhaço, já em cartaz nos cinemas brasileiros.
“Cada filme é um filme, embora eu acho que eles vão se contaminando”, afirmou o diretor em entrevista para A Tarde. “O que me instiga a fazer filmes é testar coisas novas e nem sempre isso significa ir para o caminho do experimental. São desafios e instigações muito pessoais e íntimas, e aí tem a ver com a minha trajetória também. O que eu queria experimentar muito nesse filme era realmente fazer algo mais narrativo, mais focado em um roteiro mais sólido”, continuou Diógenes.
De qualquer forma, o filme mantém o aspecto de certa inquietação que, se não está no plano formal, encontra-se na própria história contada. Trata-se do reencontro de um pai (Demick Lopes) com sua filha adolescente (Lis Sutter) depois de muito tempo sem se verem, já que ele abandonou filha e esposa para viver com outro homem (com quem ele já não está mais junto).
O pai é ator e se apresenta vestido como a personagem Silvanelly em bares de Fortaleza, shows que a filha passa a assistir como modo de se aproximar da figura paterna. Por esse ambiente, eles acabam interagindo com uma dupla de palhaços (vividos por Jesuíta Barbosa e Jupyra Carvalho).
Seguindo o caminho da trama que se sustenta em grande medida apenas na interação entre os dois personagens, Diógenes contou que ganhou um prêmio de desenvolvimento de roteiro (escrito em parceria com Amanda Pontes e Michelline Helena), o que lhes permitiu se dedicar mais à formatação da trama e da construção dos personagens.
Escuta sensível
A estrutura do roteiro de A Filha do Palhaço, aliás, na sua simplicidade, é bastante eficiente. O filme começa já com o reencontro entre os dois, mas o espectador ainda não sabe ao certo que tipo de relação existia entre eles e como que, emocionalmente, cada um lida com suas ausências. Vamos descobrindo ao longo do filme as informações do passado, ao mesmo tempo em que investigamos os sentimentos que estão em jogo no presente daquela aproximação.
Sobre isso, Demick Lopes, também em conversa com A Tarde, pontuou: “Uma das coisas que a gente construiu junto foi esse tempo da separação. O roteiro sugeria que eles tinham passado um período sem se ver, um ano talvez. Mas eu e a Lis, durante os ensaios, combinamos que esse tempo seria maior. Uma coisa é deixar de vê-la desde o Natal passado. Outra coisa é deixar ela criança e vê-la depois com peito. É um impacto muito maior e a gente optou por esse segundo momento”.
Sutter, por sua vez, que estreia seu primeiro papel no cinema, contou sobre o processo: “Eu demorei um tempo para receber o roteiro. Nos ensaios, o Pedrinho e as preparadoras de elenco deixaram claro para a gente não seguir o roteiro e tê-lo mais como um direcionamento. Antes de gravar tudo, a gente já ensaiava algumas situações que acontecem antes da história do filme”.
A liberdade criativa que eles tiveram na construção dos personagens envolve um exercício de escuta que se deu muito pela troca entre os dois atores. Isso abre caminho para a própria trajetória dos personagens. “A partir daí vai se construindo essa evolução. O pai começa travado, duro, sem saber como se portar, até que eles vão estabelecendo um contato para quebrar o gelo. E os dois se ligam de alguma forma”, complementou o ator.
Embate de gerações
A chegada inesperada da filha acende velhos traumas e novos modos de relação que vão se construindo entre eles. É realmente gracioso ver como se estabelecem esses laços a partir das carências de cada um: os dramas adolescentes da filha, interessada por um rapazinho que não dá bola para ela; e as apresentações sem muito sucesso do pai que busca viver da sua arte de performance.
Quando esses dois mundo se colidem, isso diz muito mais sobre a falta que um provoca no outro do que necessariamente potencializa os conflitos individuais por que cada um passa – a própria presença deles, um na vida do outro, torna-se um alicerce para que eles possam suportar suas dificuldades.
A questão da paternidade ausente revela-se uma grande questão no filme. Lopes lembrou de que tanto ele quando Diógenes tornaram-se pais em um período muito próximo, o que os faz compartilhar das angústias sobre esse papel social. O filme não busca culpar o pai pela ausência, até porque sabemos pouco de como isso se deu no passado, mas certamente a filha carrega – literalmente no seu rosto duro e no comportamento arredio – as dores e frustrações dessa perda que eles buscam, agora, resolver, ainda que de modo muito impreciso e sem receita.
A personagem que o pai interpreta nos palcos – inspirada no trabalho do performer transformista Paulo Diógenes, tio do diretor e precursor da comédia cearense – uma mulher caricata e exagerada, contrapõe-se com a sutileza das emoções contidas que aparecem nos mínimos detalhes, gestos e olhares que eles trocam ao longo da narrativa.
A que mais se acentua e que vai culminar no clímax do filme envolve a escuta do disco da cantora Joana, inspiração para o nome da filha. Entre as agruras da paternidade e as fragilidades emocionais que acometem as pessoas em fases distintas da vida, A Filha do Palhaço mostra uma tentativa de recuperar o tempo perdido diante da falta que um pai faz na vida dos filhos.
A Filha do Palhaço (Brasil, 2023)
Direção: Pedro Diógenes
Roteiro: Pedro Diógenes, Michelline Helena e Amanda Pontes
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 02/06/2024)