Eterna Macabéa*
“Sou datilógrafa, sou virgem e gosto de Coca-Cola”. Essa é uma das frases curiosas, dentre muitas outras, de uma das personagens mais icônicas da literatura brasileira, definindo a si mesma de modo ingênuo e sem malícias. A eterna Macabéa sai das páginas do livro de Clarice Lispector e se corporifica na atuação de Marcélia Cartaxo na versão cinematográfica de A Hora da Estrela, dirigido por Suzana Amaral em 1985.
O filme retornou esta semana aos cinemas, em cópia digital restaurada e lindíssima, através da iniciativa do projeto Sessão Vitrine Petrobrás, com ingressos a preços fixos. Além de ser um dos principais filmes de uma diretora mulher da filmografia nacional, A Hora da Estrela ganhou destaque no Festival de Berlim, em 1986, de onde saiu com o Urso de Prata de Melhor Atriz para Cartaxo, além de ser o principal ganhador no Festival de Brasília no ano anterior.
“Macabéa foi enfrentar as questões sociais que significavam a sobrevivência de uma imigrante nordestina nessa cidade grande”, definiu a intérprete da personagem em conversa exclusiva com A Tarde. Hoje, aos 60 anos, Marcélia Cartaxo celebra e relembra a jovem atriz que era aos 19 quando foi escolhida para viver essa mulher sem igual nos cinemas.
A Hora da Estrela conta as peripécias de uma jovem alagoana que chega em São Paulo, sem família ou amizades. Interage com as moças da pensão onde mora e com Glória (Tamara Taxman), colega no escritório em que trabalhar como datilógrafa (desleixada). Começa também um flerte amoroso com Olímpio (José Dumont). Sonhadora e ingênua, ela sofre humilhações e desprezo por todos à sua volta, por conta de sua personalidade retraída e também por sua condição social, de gênero e origem nordestina. Mesmo assim, ela nunca revidava e, calada, engolia os abusos.
Cartaxo conta que se enxerga um pouco nessa mulher, na medida em que ela mostrava sua sede em aprender e saber das coisas do mundo. “O que eu acho incrível na Macabéa era a coisa do rádio relógio, forma de comunicação a que ela se apegava. Ali ela mostrava que queria apreender a cultura, o conhecimento, queria ser artista. Eu me sentia um pouco assim também. Eu queria ser artista, ter uma grande oportunidade de vencer, de ganhar a vida com alegria e com mais facilidade”, pontuou a atriz ao recordar a infância e juventude humilde no interior da Paraíba.
Já sobre as violências sofridas pela personagem, Cartaxo vê aí um contra exemplo. “O filme é um aprendizado para toda mulher não ser como a Macabéa. Não ser tão ingênua e acreditar completamente nas pessoas”, defendeu.
Estreantes iluminadas
A Hora da Estrela é o primeiro longa-metragem tanto de Suzana Amaral quanto de Cartaxo. A cineasta tinha acabado de retornar dos Estados Unidos onde se formou em direção de cinema; Cartaxo, por sua vez, apesar de muito jovem, já fazia teatro na sua cidade natal, no interior da Paraíba, Cajazeiras. Com uma dessas peças, foi se apresentar em São Paulo no início dos anos 1980.
“Na época, Suzana Amaral estava procurando uma atriz para fazer A Hora da Estrela e interpretar Macabéa. Ela assistia a todas as peças que vinham do Nordeste. Ela viu minha peça e ficou muita encantada com minha interpretação porque eu era muito contida, tímida, tinha sentimentos profundos do meu personagem”.
A atriz conta que Suzana foi conhecê-la nos bastidores. Perguntou logo se Marcélia já havia lido o livro de Lispector. “Eu não tinha lido”, contou Cartaxo. “Suzana voltou no dia seguinte, viu de novo a peça, me deu de presente um exemplar do livro e pediu para eu ler. E pegou meu endereço na Paraíba. Um mês depois de voltar para minha cidade, eu recebo uma carta dela dizendo que achou linda a peça. Todo mês ela me mandava uma carta, durante oito meses”, revelou.
A partir daí, o contato das duas estreantes nunca mais parou. Já pensando em Cartaxo para o papel principal do filme, Amaral ia “dirigindo” a atriz à distância. “Ela pedia para eu fazer e usar uma camisola de saco de açúcar, simples como a que a personagem usa no filme. Li o livro várias vezes também, ensaiava as cenas de Macabéa. Não queria que a Suzana me pegasse de surpresa. Tudo que ela perguntasse sobre a personagem, eu queria responder”, confidenciou.
Logo depois chegou a carta em que a diretora pedia autorização à mãe de Cartaxo para deixar a filha vir filmar em São Paulo, coisa que se concretizou assim que a diretora conseguiu financiamento para fazer o filme. O destino de ambas estava selado para sempre.
Muitas Macabéas
Cartaxo lembra que o período de filmagem não foi fácil. Além de ser muito jovem, a diretora não queria que a cidade grande estragasse a imagem da inocência virginal da garota que, no tempo livre, não saia da casa onde arranjaram para ela ficar; e mesmo no set de filmagem, era deixada sossegada em um canto para ninguém lhe incomodar quando não estava gravando.
“Ela tinha medo que eu ficasse deslumbrada com as coisas. ‘Um dia você vai me agradecer’, ela falava. Foi um aprendizado bem incrível. A Suzana foi me conduzindo, e aos poucos fui entendendo que ela não queria que nada maculasse a inocência da personagem”, afirmou a atriz.
A única coisa que mexeu com a jovem Marcélia foi o encontro com Fernanda Montenegro, então já uma grande atriz do teatro, do cinema e da TV. Ela interpreta no filme a cartomante com quem Macabéa se consulta e que sela o destino final da personagem de modo inesperado. “Eu ficava extasiada quando conhecia os atores do filme, principalmente a Fernandona, com toda a potência que ela já era, com a maturidade e o talento dela”.
No momento de filmar, Cartaxo conta que ia lembrando das coisas que aprendeu com seu grupo de teatro e outras que tinha observado: como as pessoas andavam, falavam, respiravam. “Observe as Macabéas aí da sua cidade”, foi o conselho de Amaral que ela levou à risca. O resultado, portanto, é a visão da atriz sobre as muitas mulheres nordestinas que foram tentar a sorte no Sudeste e sonharam com a possibilidade de existir em uma vida melhor, mesmo diante das opressões.
A Hora da Estrela (Idem, Brasil, 1985)
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral e Alfredo Oroz
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 19/05/2024)