Amargos segredos de família*
Aos poucos, os filhos e parentes de dona Matita vão chegando à cidade do interior baiano onde ela mora para comemorar os 90 anos de idade da grande mãe. No entanto, ao se preparar para as comemorações, a senhora morre de forma inesperada. Literalmente, a festa se transforma em um enterro.
Esse é o ponto de partida do filme baiano A Matriarca, dirigido por Lula Oliveira, e já em cartaz nos cinemas do circuito Saladearte. É o mote ideal para que os filhos, agregados e familiares revivam o passado da família, mas, principalmente, revirem o baú das amarguras, dos segredos indigestos e dos não ditos que compõem o tecido vivo de qualquer família.
“Eu tive uma experiência anterior na minha vida que foi o falecimento de minha avó em Valença. Eu tinha por volta de 16, 17 anos. Naquela época, os velórios ainda eram feitos dentro da própria casa da pessoa. E nisso vinha padre, pastor, pai de santo, mãe de santo, marisqueira, pescador, o bêbado da cidade. Gente até pra cobrar dívida. Todos entravam na casa”, rememorou o diretor em conversa com A TARDE.
O cineasta contou, no entanto, que só futuramente, quando já estudava cinema na UFBA, foi que o projeto se concretizou para ele. “Percebi que havia naquela história uma reflexão profunda sobre o patriarcado, na construção que o filme faz ao compor o entorno daquela família, que é também sobre a formação da sociedade brasileira”.
De fato, há muitos personagens em A Matriarca. Sejam os filhos legítimos do primeiro casamento, formados por Dati (Jackson Costa), Irene (Evelin Buchegger) e Jurandir (Caco Monteiro), sejam os filhos de criação, como Sandra (Aícha Marques) e mesmo Nadir (Luciana Souza) e Tonha (Barbara Borgga), que servem como funcionárias domésticas do antigo casarão da família, ou o agregado Omar (Gil Teixeira).
Enquanto Jurandir, com sua postura de homem de bem e moral elevada, busca tratar as coisas como mais um negócio – já de olho na divisão da herança –, outros dramas se desenham, como a chegada do filho de Irene (vivido por Vinícius de Oliveira), aparentemente rebento ilegítimo gerado por um dos seus irmãos e criado por ela, o que gera um grande abalo na família.
Força feminina
Alguns desses personagens, em especial as mulheres, começam o filme em silêncio, mas logo irão elevar suas vozes e revelar suas indignações, como Celeste (Analu Tavares), a esposa submissa de Jurandir. Nesse conjunto de tensões, e com esse nome, o filme acaba revelando a força da identidade feminina, sustentáculo da família brasileira.
“A Manuela Dias escreveu comigo o argumento e a ideia inicial do projeto para submeter ao edital. Mas depois eu tive que trazer outras mulheres para o roteiro, como Ana Luiza Penna e Inês Figueiró, para criarmos uma reflexão crítica também sobre o processo do matriarcado”, confidenciou o diretor.
Há ainda uma dimensão religiosa muito forte dentro dessa dinâmica de libertação feminina, sendo a presença de Santa Bárbara/Iansã entidades muito evocadas pela trama. “Minha avó era devota de Santa Bárbara. Essa imagem está na minha cabeça desde que eu sou muito menino. E a relação sincrética de Santa da Bárbara com Iansã vem sendo construída em minha vida num processo de conhecimento das mitologias africanas, da minha relação com Candomblé”, afirmou Oliveira.
Há, no filme, até mesmo uma evocação dessa matriz feminina na composição física da personagem defendida por Sônia Leite, uma senhora que foi amiga de Matita e parece saber desvendar os anseios de sua alma; e também na incorporação da figura mítica presente na misteriosa personagem de Loiá Fernandes, espécie de entidade que aparece para Tonha, e que leva o clímax do filme para um lugar de libertação e expurgo das dores do passado daquelas mulheres.
A imagem da matriarca na trama, sempre vista e referida pelos olhos dos outros, é uma figura enigmática, às vezes descrita como uma mulher que “errou, acertou, mas fez tudo por amor”. No entanto, fica clara a sua disposição para a independência e a garra com que lidou com as agruras de sustentar aquela família.
Sul da Bahia
Filmado nas cidades de Valença – berço da família do diretor – e Cairu, A Matriarca lança luz sobre essa paisagem pouco vista no cinema e no audiosivual locais. “O Baixo Sul da Bahia é uma região muito singular na formação civilizatória do Brasil. A gente fala muito do Recôncavo ou de Salvador, mas o Baixo Sul recebeu todo aquele processo formativo de colonização muito profunda no Brasil dos anos 1700”, pontuou o cineasta.
Além disso, Oliveira incorpora outras mitologias dentro da trama que são muito próprias dos interiores do Brasil. Há a história da promessa de achar um antigo sino afundado nos mares da região; até ser encontrado, o sino provocaria uma maldição na família, com a morte de um dos filhos gêmeos toda vez que fossem gerados – como foi o caso da irmã de Matita, do irmão de Jurandir e parece ser o caso, agora, da gravidez da atual mulher de Dati.
“Eu tenho essa relação afetiva com a região. Apesar de ter nascido em Salvador, minha infância foi toda em Valença”, confidenciou o diretor. Aparecem no filme ainda as manifestações populares comuns no lugar, como os Caretas, o Congado de Cairu e os Zambiapungas de Nilo Peçanha.
Nesse entremeio entre as tradições populares, os maus agouros de pragas do passado e os conflitos concretos daqueles que ficaram para levar adiante os desacertos da família, A Matriarca se constitui como um drama denso, mas catártico. O filme se sustenta na entrega e no empenho homogêneo dos atores, mas também nos segredos familiares que, de uma forma ou de outra, sempre retornam para nos assombrar – e, por que não, também para nos libertar?
A Matriarca (Brasil, 2024)
Direção: Lula Oliveira
Roteiro: Lula Oliveira, Ana Luiza Penna, Inês Figueiró, João Rodrigo Mattos e Fábio Rocha
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 01/06/2025)