As batalhas do Imperador*
Quando Dom Pedro I resolve voltar para Portugal, em 1931, a fim de reaver o direito ao trono de Portugal, que estava nas mãos do seu irmão, as coisas já não estavam muito boas para ele no Brasil. Depois de ter proclamado a Independência do país, quase dez anos antes, a situação política já havia mudado muito e os brasileiros já não mais apoiavam o seu governo.
Escorraçado do país e sem apoio político, ele decide partir para seu país natal, deixando no Brasil o seu filho herdeiro de apenas seis anos de idade. Ele embarca na fragata britânica HMS Warspite para retornar à Europa. É a história dessa viagem de regresso que iremos testemunhar em A Viagem de Pedro, dirigido por Laís Bodanzky, filme já em cartaz nos cinemas do país.
“Nós brasileiros desconhecemos o que ele fez na Europa; já os portugueses desconhecem da vida do dom Pedro aqui no Brasil – para eles é o Dom Pedro IV –, só conhecem o momento em que ele chega lá, adulto. Então eu quis mostrar esse momento entre mundos, em que ele está no oceano Atlântico, emocionalmente abalado, vivendo uma grande crise política”, afirma a cineasta Laís Bodansky, que conversou com ATARDE sobre o filme
Interpretado por Cauã Reymond, o imperador brasileiro é um homem transtornado e cheio de crises no momento em que parte para Portugal. O filme lida com tais tormentos enquanto ele faz a travessia, mas se dedica também a explicar fatos e situações do passado, através de flashbacks. Ali, conhecemos o apreço que ele tinha pelo Brasil, que considerava a sua verdadeira casa, e também presenciamos a paixão que ele nutria por sua primeira esposa, Maria Leopoldina (Luise Heyer), que já havia morrido – no momento da viagem, ele já estava casado com Amélia de Leuchtenberg (Victoria Guerra).
O filme também investe em alguns momentos de delírios do imperador – ele estava doente quando fez a viagem, provavelmente com sífilis –, o que o deixa ainda mais preocupado e fragilizado, física e emocionalmente. Tudo isso cria um caleidoscópio de situações e percepções que fazem de A Viagem de Pedro um filme vertiginoso, mas também compreensivo na medida em que busca dar conta das muitas facetas e nuances que operavam na vida do monarca naquele momento.
“A maioria dos livros de História tem um parágrafo que fala que ele partiu, atravessou o Atlântico e no parágrafo seguinte é a chegada dele à Europa. E o que aconteceu nessa viagem?”, questionou-se a diretora. “Fui atrás de documentos dessa travessia, mas não tem. Só existe um documento que está guardado no Museu Imperial de Petrópolis, que é o próprio diário que Dom Pedro fez. Eu tentei de todas as formas ter acesso a esse documento e não consegui, de tal forma que em certo momento eu não quis mais”, confidencia Bodanzky.
Raízes do Brasil
A diretora sentiu que teria mais liberdade artística para falar desse personagem com as informações históricas disponíveis, mas com certa licença poética para poder imaginar situações que ocorreram ali. A trama do filme assume a posição de lacuna histórica. Mas o universo que Bodanzky cria dentro da embarcação é muito crível e palpável, entre membros da corte, negros libertos, serviçais e a própria tripulação inglesa.
O núcleo de personagens negros – não necessariamente escravizados, já que naquela embarcação inglesa a escravidão não era permitida, de acordo com a lei britânica – é muito rico e diverso. Um dos destaques é o Chef, vivido pelo ator baiano Sérgio Laurentino, que incorpora o cozinheiro da embarcação.
“Quando me falaram que era um personagem de Ogum, uma história real, com um cargo não escravizado, um homem poliglota, eu me empolguei. Fui tentando entender e dar a minha palheta de interpretação para o personagem”, afirma o ator. “Eu busquei construí-lo como um homem atemporal. É um cara meio invisível da sociedade, mas está em vários lugares; é um conhecedor de folhas, meio curandeiro, meio cozinheiro”, complementa.
Naquela embarcação, Dom Pedro lida com os fantasmas e as incertezas da realeza, sua impotência sexual e a doença venérea – depois de ter colecionado grande fama de mulherengo. Os negros que estão ali não perdem a chance de caçoar dele também, mas são personagens mais do que secundários.
“O filme tinha a intenção de revelar quem formava o Brasil naquela época. Contar a história das pessoas pretas, delas terem narrativas, nomes, arcos dramáticos era importante justamente para olharmos para os dias de hoje e compreender que talvez não tenha mudado tanta coisa. Ao mesmo tempo, essa diversidade cultural está lá”, pontua a cineasta.
Dentre os personagens negros, importante destacar os papeis de Lars (Welket Bunguê), que vive o contra-almirante da embarcação; e da serviçal, mas negra liberta, Dira (Isabél Zuaa). Sobre isso, Laurentino também acrescenta: “Esse era o retrato do Brasil do início do século XVIII, uma grande torre de Babel com várias línguas, inclusive africanas (quimbundo, iorubá, crioulo)”.
Laurentino é ainda ator do Bando de Teatro Olodum e, por esse papel, ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante no Festival do Rio ano passado, quando o filme estreou por lá. Ele ainda pontua que todo povo preto deveria ver esse filme porque é possível entender como começa a história política desse país.
Bicentenário
Não é à toa que A Viagem de Pedro esteja estreando neste momento em que se reflete sobre a formação do Estado brasileiro, já que o próximo Sete de Setembro marca o bicentenário da Independência. Além disso, é também um ano de eleições presidenciais importantes.
“Não tem melhor momento para se olhar para nosso passado e entender os dias de hoje do que agora, quando temos de pensar em quem queremos eleger. Precisamos entender que não temos nada a comemorar nesse bicentenário, mas usar a data como um momento de reflexão. Na verdade, nós estamos duzentos anos atrasados num projeto de país”, pondera a cineasta.
A Viagem de Pedro é uma coprodução com Portugal, parceria que contribuiu muito para a reconstituição da época, dos cenários e dos figurinos – a equipe chegou a filmar dentro de uma embarcação verdadeira que partiu de Salvador rumo ao Rio de Janeiro. Mas antes de ser um filme de viés histórico, é também uma observação de Brasil e das pessoas que o forjaram, de muitas maneiras.
“Esse filme nunca se chamou ‘A Viagem de Dom Pedro’; desde o início era um filme sobre o Pedro, o homem. A História é feita por pessoas, com suas determinações, seus porquês. Para mim era importante desconstruir esses marcos históricos e esses símbolos, como as nossas estátuas”, arremata Bodanzky.
A Viagem de Pedro (Brasil/Portugal, 2021)
Direção: Laís Bodanzky
Roteiro: Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi e Chico Mattoso
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 04/09/2022)