Arca de Noé / Entrevista com Sérgio Machado

De vento em popa*

Este não é apenas um momento importante para o cinema brasileiro, mas uma semana fundamental para impulsionar a produção nacional. Além da estreia do aguardado e premiado internacionalmente Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, chega também às salas de cinema Arca de Noé, animação em 3D que promete fazer história no Brasil pelas proporções de investimento e pretensões de alcance.

São filmes que miram públicos diferentes, mas revelam a força de um cinema que tem tudo para alcançar grandes bilheterias este ano para os padrões nacionais, fora seus méritos artísticos. Arca de Noé é baseada no livro infantil publicado por Vinicius de Morais no início dos anos 1970 e que virou disco duplo na década seguinte. Tratam-se de poemas soltos e posteriormente musicados que agora ganham uma narrativa audiovisual amarrada e muito divertida.

A mítica história bíblica da construção da arca pelas mãos de Noé, seguindo as instruções de Deus para embarcar e salvar do dilúvio um casal de cada espécie animal, torna-se uma aventura sobre sobrevivência e amizade na trama protagonizada pelos ratos Tom (voz de Marcelo Adnet) e Vini (voz de Rodrigo Santoro). O problema é que por serem machos, somente um deles poderia entrar na embarcação, junto com a ratinha Nina (Alice Braga).

O diretor Sérgio Machado esteve em Salvador para a pré-estreia do filme e conversou com A Tarde sobre o extenso trabalho de feitura de uma animação deste porte no país, algo novo até para ele que se aventura pela primeira vez no gênero. “Quando eu trabalhei com Walter Salles em Central do Brasil, ele me via rodeado de crianças e me disse que um dia eu ia fazer um filme infantil. Mas isso nunca me passou pela cabeça, muito menos fazer uma animação”, revelou o cineasta.

Isso mudou quando ele conheceu a filha de Vinicius, Susana de Moraes, que sempre idealizou o projeto de levar a obra do pai para o cinema. “Eu me apaixonei pela Susana, foi uma relação de amor compartilhada. Ela era uma ótima contadora de histórias e a gente começou a trabalhar juntos numa ideia inicial”, lembrou o cineasta.

Susana faleceu em 2015, mas o projeto teve continuidade e foi ganhando maiores proporções no decorrer dos anos. O filme é uma coprodução com Estados Unidos e Índia (que possui um parque industrial de animação fortíssimo e presta serviço a grande estúdios do ramo no mundo, inclusive americanos), custou em média US$ 6 milhões de dólares e já foi vendido para mais de 70 países até o momento.

Artesania da animação

Machado contou também que sempre houve o desejo de fazer um projeto grandioso com o filme. “A gente queria fazer jus ao tamanho da obra de Vinicius, que fosse para um público amplo. Garota de Ipanema é uma das músicas mais regravadas e executadas no mundo. A obra dele tem essa dimensão. E a Arca faz parte do imaginário coletivo, eu ouvi quando criança, tinha o disquinho e o encarte.”

Para isso, foi preciso um esforço coletivo. Walter Salles produz o filme e chamou Machado para a direção. Daí entrou em cena a Gullane como empresa produtora principal, que por sua vez convidou a NIP (Núcleo Independente de Produção), especializada em animação. E tiveram a ideia de chamar o animador Alois Di Leo (nascido no Peru, mas radicado no Brasil) para somar com sua experiência técnica.

“A gente se deu muito bem nesse trabalho. Havia uma certa divisão de funções. Eu cuidava mais da dramaturgia, de conceber o visual, os personagens e as cenas, e ele tocava isso mais diretamente com a equipe técnica, que eram mais de 1600 pessoas trabalhando no Brasil, Índia e Estados Unidos”, pontuou o cineasta.

O diretor explicou também que o maior desafio da animação é criar todo um universo do zero, não apenas os personagens e a história, mas todos os elementos que estão em cena. “Depois que a gente definiu o visual do filme, fomos para um ambiente virtual chamado animatic, em que desenhamos os planos de maneira rascunhada e já com elementos animados, feitos com certa precisão. Essa é a maior diferença em relação a um filme live action”, explicou.

Fauna estelar

O processo de dar voz aos personagens é outra etapa fundamental em uma animação. Machado contou como aproveitou esse momento para abrir uma brecha para criar. “Eu deixava os atores livres para improvisar e inventar coisas, o que em tese é proibido numa animação. Na parte da edição era preciso dar um jeito para fazer caber essas falas, tem algumas inteiramente inventadas na hora. Mas eu queria dar liberdade aos atores nesse aspecto”.

Isso porque os próprios personagens concebidos por Vinicius têm sua complexidade, apesar de se tratar de um produto infantil. “Os bichos do filme não são heroicos, nem fofos, nem bonzinhos. É um pato pateta que pinta o caneco, bate na galinha, leva um coice e vai pra panela. Os bichos são meio toscos. Tem uma ironia e humor que são próprios do Vinicius. E eles também têm certa consciência de sua fragilidade porque se não eles vão ser presas para os animais mais fortes”, afirmou Machado.

Arca de Noé chama atenção também pelo enorme elenco de figuras conhecidas, não só de atores que vivem os diversos personagens (a maioria bichos, mas também Noé e sua família), mas também dos músicos que gravaram as diversas músicas do filme.

Além do trio de atores principais, o restante da lista é imensa: Lázaro Ramos, Julio Andrade, Bruno Gagliasso, Eduardo Sterblitch, Ingrid Guimarães, Heloisa Périssé, Babu Santana, Seu Jorge, Chico César, Russo Passapusso, Larissa Luz e muitos outros.

O diretor contou também que o problema não foi conseguir essa galera toda, e sim o contrário. “Eu queria um elenco de peso pro filme e eu fui convidando muito mais gente do que tinha de personagem porque eu imaginei que muitos não iam poder participar, iam estar com agenda cheia. Eu convidei 45 pessoas para os 30 personagens que tinham. E todos aceitaram. Então ficou uma turma grande de fora”.

Por conta disso e também pela previsão de sucesso e venda do filme, toda a equipe já está trabalhando em uma continuação de Arca de Noé. Mas antes, Machado tem vários outros projetos no caminho. 3 Obás de Xangô, sobre a amizade entre Jorge Amado, Carybé e Dorival Caymmi, já está pronto e deve ser lançado no primeiro semestre de 2025. Tem ainda a série Maria e o Cangaço feita para o streaming da Disney+ e o documentário musical A Bahia me Fez Assim.

O diretor celebrou esse momento frutífero para o cinema nacional. “Ainda Estou Aqui está entrando em cerca de 600 salas de cinema no Brasil, Arca em 1000. É um momento raro em que a gente está quase equilibrado com os norte-americanos em ocupação de sala. Isso é uma forma maravilhosa de reencontro com o público”.

Arca de Noé (Brasil/Índia/EUA, 2024)
Direção: Sérgio Machado e Alois Di Leo
Roteiro: Sérgio Machado, Heloísa Périssé e Ingrid Guimarães

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 10/11/2024)

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