Adoração doentia*
Dos muitos comportamentos e expressões incorporados à nossa vida e vocabulário nos últimos anos, por conta das interações online e do mundo conectado, está o uso do termo “stalker”. Ele já existia na língua inglesa com o sentido de “perseguir” ou “espreitar”, mas ganhou uma nova aplicação no universo da internet ao se referir à ação de espiar ou monitorar a vida de alguém através de seus perfis pessoais nas redes sociais ou em qualquer outro lugar da internet.
No português, ganhou até mesmo um formato de verbo (“stalkear”) em linguagem informal. E esse é o tema imediato de Bebê Rena, nova série da Netflix que se tornou um grande sucesso nas últimas semanas assim que estreou na famosa plataforma de streaming.
Possui ainda o curioso e atrativo fato de ser uma história real recontada pelo ator e comediante escocês Richard Gadd. Ele revelou como sofreu com a perseguição insistente e doentia de uma mulher que conheceu por acaso em um bar onde ele trabalhava como atendente.
Readaptando a sua história para a ficção, o próprio Gadd interpreta Donny Dunn, aspirante a comediante que se arvora na difícil tarefa de fazer sucesso na comédia standup, tentando alavancar sua carreira artística. Sua stalker na série é vivida pela atriz Jessica Gunning, que recebeu o nome fictício de Martha Scott. Fora a mudança dos nomes e alguma ou outra situação e ordem dos acontecimentos, Gadd assegura a veracidade do que aconteceu.
A mulher gorda, de meia idade, aparentemente simpática, mas bastante solitária e carente, a quem ele serviu um chá de graça pela agradável conversa inicial que tiveram, vai se tornar a pedra no sapato do rapaz ao insistir em lhe enviar inúmeros e-mails, mensagens de voz e texto por celular, além dos comentários deixados no Twitter e Facebook dele. Muito rapidamente a coisa escala para uma compulsão fora do comum diante da insistência dela (Gadd afirmou que nos quatro anos em que se deu o caso, ele recebeu mais de 40 mil e-mails da obsessora), mesmo sem a reciprocidade dele nas respostas.
O conteúdo das mensagens varia da afabilidade de uma moça que flerta com um possível interesse romântico ao tom de ameaça e coação; outras possuem teor sexual, às vezes em forma de brincadeira atrevida, com duplo sentido jocoso ou mesmo em tom mais agressivo e pesado. A maioria dessas mensagens é escrita ortograficamente errada, supondo rapidez ao digitar ou mesmo deficiência cognitiva.
Traumas somados
Independente de qual seja a condição psicológica e as intenções de Martha, a coisas ficam assustadoras muito rapidamente, respingando na vida pessoal e profissional do rapaz. A família e os amigos dele passam a sofrer também com o assédio dela, o que faz a vida dele virar do avesso – além do fato de, jovem em busca de oportunidades, a condição financeira não ser das melhores.
Mas a situação de Donny fica ainda mais complexa por conta dos problemas psicológicos que o próprio personagem carrega. E aí Bebê Rena se torna não apenas uma narrativa sobre stalkers nocivos, mas também sobre os traumas psicológicos que se acentuam em algumas pessoas por conta da fragilidade emocional.
Logo na primeira cena do primeiro episódio, Donny chega a um departamento de polícia a fim de denunciar as perseguições de Martha. Além de ser desacreditado em primeiro momento pela polícia, ele mesmo sofre com outros traumas que serão revividos na trama. Isso fez com que ele tenha demorado em denunciar o caso às autoridades, deixando a perseguição ganhar proporções mais mórbidas.
Tais problemas pessoais do protagonista envolvem incertezas quanto à sua própria sexualidade – ele se envolve com uma mulher trans (vivida por Nava Mau), mas tem vergonha de assumir a relação publicamente –, assim como caminha para se entender como um homem bissexual, mas sem muita segurança disso. Mais pesadas ainda são as situações de abuso que ele sofre ao se envolver com outras pessoas em que a rotina sexual e profissional se misturam de forma pouco saudável e mesmo criminosa.
São portanto muitos traumas somados e interseccionados que o personagem precisa enfrentar à medida em que o assédio de Martha continua acontecendo. No final das contas, são dois personagens que enfrentam fragilidades emocionais, encontram por um brevíssimo espaço de tempo certa cumplicidade um no outro, mas logo passam a viver uma relação nociva.
Desdobramentos reais
Muito recentemente, uma mulher veio a público dizendo ser a verdadeira Martha da série. Fiona Harvey apareceu em um programa de TV para desmentir todas as acusações que são feitas a ela por Gadd na série, dada a repercussão do caso. Ela diz que o rapaz é um psicótico e promete processá-lo, assim como a Netflix, por injúria.
Apesar de Martha ser o elo catalisador de todo o drama, é quando adentramos na complexidade da mente de Gadd que a série ganha contornos mais intensos. Mais do que tentar desvendar as razões da insistência de Martha nessa relação e mesmo a sua real condição de saúde mental, a série está mais interessada nas agruras psicológicas desse homem diante dos seus demônios pessoais.
Nesse sentido, é muito corajoso da parte de Gadd se expor assim, ainda que se trate de uma peça de ficção. Em alguma medida, Martha não deixa de ser uma personagem um tanto caricata, mas credível no seu comportamento doentio. Donny, por sua vez, é quase um personagem trágico, ainda que a série não o coloque em posição de coitadismo – até porque é o próprio Gadd quem assina o roteiro, depois de já ter feito uma peça de teatro contando a mesma trama.
Independente de quem esteja falando a verdade nessa história toda, Bebê Rena lança luz sobre as nossas fraquezas emocionais que se acentuam em tempos de ultra exposição digital. E também sobre como a adoração pode se tornar obsessão doentia.
Bebê Rena (Baby Reindeer, Reino Unido/EUA, 2024)
Criação: Richard Gadd
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 20/05/2024)