Benedetta

Entre o carnal e o divino*

No filme anterior de Paul Verhoeven, a personagem de Isabelle Huppert interpretava uma mulher que sofre estupro e, ao invés de denunciar o caso, prefere tentar descobrir ela mesma o criminoso, iniciando com ele um jogo de sedução e violência. Agora, o cineasta nascido na Holanda conta a história de uma freira italiana do início do século XVII que possuía visões de Jesus, sonhos eróticos e manteve uma relação íntima com uma de suas companheiras de claustro.

Vê-se logo que Verhoeven não escolhe temas fáceis. Bendetta Carlini de Vellano foi uma freira que viveu no convento da cidade de Pescia desde os nove anos de idade. Um pouco mais adulta, começou a ter visões de Jesus e a sofrer chagas no seu corpo tais como as da crucificação de Cristo. Sem saber se se tratavam de imagens divinas ou possessão demoníaca, ela passou a ser acompanhada de perto pela irmã Bartolomea, o que logo evoluiu para uma relação amorosa e sexual entre as duas.

Tudo isso está no longa, e Verhoeven filma com certa atenção à veracidade dos fatos – o filme é baseado no livro Atos Impuros – A Vida de uma Freira Lésbica na Itália da Renascença, da escritora Judith C. Brown. No entanto, o cinema que ele faz está menos preocupado com uma transposição altamente fiel da história e mais com o desenvolvimento de uma narrativa que coloque em questão a santidade e os desejos carnais, em contraponto com os costumes e as duras leis religiosas da época – em pleno desabrochar da Renascença, passando pela crise da Igreja Católica com a Reforma Protestante. Vale lembrar que Verhoeven é essencialmente um cineasta do corpo e de suas transformações.

Nesse sentido, importa mais a ele os jogos de poder que se estabelecem na história, a partir das relações e dos desejos entre Benedetta (vivida pela ótima Virginie Efira) e Bartolomea (Daphne Patakia). Mas não só entre elas, porque entra na equação ainda os desmandos e descréditos da madre superiora (Charlotte Rampling) e por outras freiras do convento que não enxergam com bons olhos as atitudes e comportamentos de Benedetta. Mais tarde, também o representante episcopal (Lambert Wilson) vai se somar ao grupo com suas imposições clericais (e também gananciosas).

Bendetta se faz, portanto, como uma trama de intimidades que vão se descortinando com muita desfaçatez à medida que o filme transcorre. Verhoeven não se detém em explicar os fatos e fenômenos que atravessam o caminho de (e a própria) Benedetta; antes, se mostra interessado em apresentar a jornada dessa mulher controversa, entre a culpabilização por seus atos impuros, mas também de adoração por suas visões e seus dons tidos como divinos, o que provoca uma polarização de opiniões no convento.

O corpo de Cristo

Diante de história tão poderosa e de personagem tão fascinante (Benedetta parece incorporar boa parte dos temas caros ao diretor: o corpo, o sexo e a religião – o cineasta tem um projeto de filme sobre a vida de Jesus Cristo, pesquisa que ele faz há anos), Verhoeven não poupa esforços para deixar tudo às claras e sem não-ditos. As situações não são sugeridas nem deixadas em suspenso pelo filme, mas sim reveladas e mostradas em detalhes, desde as visões e sonhos religiosas da freira, como também suas aventuras sexuais com a colega de convento.

Os sonhos em que Jesus lhe aparece fincado na cruz (e com quem ela se encosta pelada na mesma posição) ou montado a cavalo, enfrentando e matando soldados que a queriam estuprar, são todos filmados como uma aventura que envolve algum tipo de sedução entre eles. A partir dessa aproximação divina, Benedetta se diz esposa de Cristo, uma comunhão que a coloca em lugar de privilégio santo, como se ela tivesse acesso direto ao filho de Deus.

Mas outro tipo de comunhão se dá por entre as quatro paredes do convento, esse de aspecto mais carnal. A relação de amizade e atritos com Bartolomea ganha ares de um romance com a qual elas serão confrontadas, mas que não as impede de viver intensamente. Também aí o filme não se priva de filmar as cenas de sexo com ousadia, acentuando o aspecto do prazer contido ali, sem culpas – algumas dessas cenas envolvem um artefato sexual fabricado a partir da estatueta de uma santa. A história das duas, aliás, é um marco dentre os registros sobre relações lésbicas na modernidade.

O filme não tenta nos convencer dos milagres e dons de Benedetta, como uma tentativa de angariar nossa aprovação à causa dela – seja ela qual for. Nunca sabemos ao certo quais as reais intenções da freira, muito menos os seus planos e mesmo os conflitos e dúvidas internas que lhe surgem a partir de tudo que passa a acontecer em sua vida e em seu próprio corpo. Ela apenas segue, servindo aos seus instintos e aos seus dons divinos.

A própria maneira como se filma os corpos nus de suas atrizes, sem pudores e com certa naturalidade, demonstra o lugar de desapego ao choque puro e simples de onde Verhoeven fala, nunca como um explorador dessas cenas que se querem polêmicas, seja no aspecto sexual ou religioso. É como se aquele corpo não lhe pertencesse – nem a nós, espectadores –, antes servissem apenas aos designíos de Cristo.

Veia autoral

Cineasta prolífico, um veterano que hoje vive na França, depois de já ter passado uma frutífera temporada nos Estados Unidos (onde dirigiu pérolas como Robocop – O Policial do Futuro, Instinto Selvagem e a obra-prima Showgirls), o diretor poderia ser visto como mais um polemista gratuito (o cinema dito “de arte” está cheio deles). Mas Verhoeven sabe como ninguém adequar tais histórias “polêmicas” ao tipo de produto que lhe interessa.

Ainda que seu cinema hoje possua um verniz classudo (seja no tom límpido da fotografia, seja na encenação certeira e sem firulas, muito segura e competente), Verhoeven possui também um flerte despudorado com o popularesco, quase como se se inspirasse em um tipo de literatura barata e exploitation, contraponto que torna o seu cinema muito peculiar e especial.

Benedetta acaba se tornando um exemplo bem claro disso. O filme possui até mesmo um desenvolvimento um tanto rocambolesco na maneira como situações ora chocantes, ora complexas, se atropelam na trama, levando adiante um filme que parece querer testar os limites temáticos com os quais se propôs a lidar (o messianismo religioso e a sexualidade lésbica, tudo isso dentro de um convento no século XVII). Visto hoje, soa como um retrato dos mais potentes sobre a dor e o desejo.

Benedetta (França/Bélgica/Holanda, 2021)
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: Paul Verhoeven e David Birke

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 14/01/2022)

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