Cabeça de Nêgo

Sangue de Pantera*

As manifestações estudantis que sacudiram o Brasil na última década renderam muitos filmes, a maioria deles documentários, que coloca em pauta discussões políticas envolvendo, dentre outras coisas, o acesso aos direitos básicos, como moradia digna, transporte coletivo mais barato e educação de qualidade para todos. Cabeça de Nêgo pode ser visto também como resultado dessa movimentação política dos jovens inseridos nos debate atual no campo da educação básica e das demais questões que se ampliam a partir daí.

Isso porque o filme cearense dirigido por Déo Cardoso é bastante pujante no retrato que faz de um universo estudantil em ebulição, dentro de um contexto bem micro – uma pequena escola pública no Ceará –, mas que acaba expondo uma realidade que se observa em vários cantos do país, especialmente no contexto das periferias das grandes cidades.

Saulo (Lucas Limeira) é um garoto negro que faz parte do grêmio estudantil do pequeno colégio em que estuda. Um dia, ele sofre uma injúria racial dentro da sala de aula por parte de um dos colegas e, quando revida, é chamado para a direção. No entanto, ele se recusa a sair não só da sala, mas também da própria escola quando tentam expulsá-lo. O barril de pólvora está apenas enchendo.

Cabeça de Nêgo fez sua estreia na Mostra Tiradentes e chega agora no circuito comercial. Este é o primeiro longa-metragem do diretor Déo Cardoso e já revela um cineasta de mão e cabeça cheias, não só no campo discursivo e temático, mas também em termos de realização e composição de cena.

É o velho caso em que forma e conteúdo se conjugam. Além de trazer à tona, por vezes de modo muito direto e até mesmo didático, questões sociais e raciais ligadas a um ambiente juvenil e escolar de periferia, o longa possui um desenho de roteiro super bem cuidado e amarrado. É ainda filmado com habilidade narrativa e uma cadência que acompanha o crescendo das tensões e embates que se estabelecem naquele ambiente a partir do caso de “desobediência civil” de Saulo.

Dentro do cinema brasileiro independente, vindo de um contexto de baixíssimo orçamento e com apoio de políticas públicas de financiamento, especialmente de filmes fora do eixo Rio-SP, Cabeça de Nêgo é um achado nesse sentido. Possui pretensões políticas claras, a partir de uma linguagem acessível e que não deixa de ser pulsante.

Militância negra

Tudo que gira ao redor do protagonista será importante para compor esse quadro de debates que não passa apenas pela questão racial, mas também sobre violência (de muitos tipos), sobre o sistema educacional público, as lutas estudantis e, mais profundamente, sobre o próprio conceito de educação.

A escola se divide entre os colegas desinteressados e brincalhões, alguns mal encarados (incluindo aí aquele que agrediu Saulo e que se envolve com grupos barra pesada do bairro) e aqueles que apoiam a atitude de subversão do garoto, preparando uma grande ocupação para chamar atenção da sociedade e da mídia. Esta, por sua vez, tanto revela seu lado conservador, como também aparecem outras iniciativas mais compreensivas e de real apuração dos fatos.

A mãe de Saulo (família que acabou de perder um filho assassinado) também apoia o garoto, mas mantém suas preocupações e receios com as atitudes e principalmente com a segurança do filho. Já o porteiro da escola, um homem negro, precisa acatar as ordens da direção do colégio que quer expulsar de uma vez por todas o garoto, muito embora esse zelador parecesse muito mais ligado à causa dos alunos.

São, portanto, muitos personagens e elementos que se interligam nessa trama, e o filme consegue ampliar as camadas que os envolvem, a fim de não tornar a história maniqueísta ou excessivamente panfletária, com muitos prós e contras. Ainda assim, o longa não tem medo algum em expor e se colocar ao lado de uma militância negra atuante e fortemente combativa.

Força juvenil

Enquanto isso, Saulo passa os dias na escola estudando, por conta própria, sobre os Panteras Negras e as ideias de Angela Davis, a partir dos livros e apostilas emprestados pela professora Elaine (mulher negra, uma das poucas docentes que apoiam a luta de Saulo – há um diálogo delicioso entre eles em que discutem qual é o membro dos Panteras preferido de cada um; Fred Hampton para ele, Ericka Huggins para ela).

Além disso, ele acaba descobrindo os podres da administração do colégio, estocando comida vencida pra a merenda, guardando material didático que nunca chega aos alunos e deixando envelhecer os computadores e equipamentos que poderiam estar em uso. Com um celular, ele faz vídeos e denuncia nas redes sociais toda essa situação, como um bom nativo digital. A situação, então, ganha proporções maiores do que o esperado, e o enfrentamento é inevitável.

Ao som de Sorrisos e Lágrimas, do Emicida, Saulo, lendo sozinho na sala de aula à noite, é filmado com uma série de imagens projetadas na parede atrás dele – por onde passeiam figuras como Lélia González, Martin Luther King, Nelson Mandela, dentre outras figuras negras importantes para o debate racial no Brasil e no mundo.

É com esse espírito combativo, assumidamente parcial (e racializado) e através de uma estrutura narrativa muito sólida e bem amarrada (pegando emprestado um pouco da energia juvenil que emana dos personagens), que Cabeça de Nêgo constrói o seu discurso aguerrido, assumidamente escolar e, por isso mesmo, com desejos de transformação.

Cabeça de Nêgo (Brasil, 2020)
Direção: Déo Cardoso
Roteiro: Déo Cardoso

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 19/11/2021)

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