Um dos filmes mais aguardados do Cine Ceará, Cavalo Dinheiro traz a rigidez plástica e narrativa habitual do cinema de Pedro Costa, uma espécie de obra a se desvendar – e que faz muito sentido se vista em conjunta com seus outros filmes, especialmente Juventude em Marcha. Pode não ser tarefa das mais fáceis, mas não deixa de ser prazeroso acompanhar novos passos, novas pulsões, agora com um apuro estético ampliado.
Com narrativa densa, o longa retrata, de forma quase fantasmagórica, os descaminhos de Ventura, um velho imigrante caboverdiano que vivia no bairro pobre de Fontainhas, ao norte de Lisboa, antes da região ser destruída pela administração local e seus moradores realojados.
Entre passado e presente, Ventura parece existir e se mover por um universo sombrio, um misto de realidade e memória, retratado de maneira sempre enigmática. O encontro com uma personagem feminina, Vitalina, vinda de Cabo Verde com sua dor de viúva, faz reviver antigas lembranças que se embaralham na mente enfraquecida, mas ativa, de Ventura.
Há aí um duplo deslocamento: a saída de Cabo Verde, como muitos imigrantes que chegaram a Portugal há algumas décadas, para viver na periferia; mas de lá também expulso em nome do progresso desenvolvimentista do país. Vive, portanto, como um espectro tentando dar conta das imagens que lhe (nos) chegam agora, embaralhadas, fugidias.
Se Cavalo Dinheiro soa como uma continuidade do percurso desse personagem que segue adiante em sua peregrinação quase cega – é a única existência que lhe resta –, mas sem abandonar o passado, o filme está longe de repetições. Consegue ser até mais dinâmico que o longa anterior, apesar da austeridade estética de Costa, retrabalhando elementos que vamos juntando na lógica narrativa do protagonista. E ainda tem algo de muito afetivo aqui, seja na maneira como se importa com o destino, as palavras e lembranças desses personagens, mas também em reparar na dignidade de um povo miserável, os pares de Ventura – a sequência dos “retratos” dos moradores, ao lado das pobres casas, ao som de uma música crioula antiga, é um dos momentos mais belos e singelos do filme.
Cavalo Dinheiro acabou levando os prêmios de Direção de Arte, Som e Fotografia no festival. Esse último quesito tem importância fundamental na narrativa. O diretor de fotografia, Leonardo Simões, esteve em Fortaleza e falou do minucioso e genial processo de iluminação do filme. É um deslumbre o que ele, em parceria com Costa, faz em tela (o fotógrafo chegou a dizer que não há um único plano ou iluminação no filme que não fosse pensado por Costa).
Os personagens surgem envoltos por uma escuridão atroz, quase não se enxerga o seu entorno. Os atores, geralmente fixados no centro do plano – essa imobilidade que tanto diz sobre a condição de seus personagens – são banhados em suas feições por feixes duros de luz que não lhes escapam pela firmeza que conseguem imprimir. Um cinema de luz e escuridão, um contrate tão forte que faz com aquelas pessoas e suas histórias, suas memórias, possam existir na tela e no mundo que nos alcança, sombras que têm muito a contar.