Sobre famílias e espinhos*
Em muitos sentidos, Cravos é um filme de (em) família. A esposa do diretor Marco Del Fiol e produtora do longa, Minom Pinho, já conhecia o fotógrafo Christian Cravo porque o pai dela era amigo do pai dele, o também fotógrafo Mario Cravo Neto. Os dois artistas eram filho e neto do renomado escultor e pintor Mario Cravo Júnior. Uma família de artistas, portanto, consolidados e reconhecidos nas suas respectivas áreas.
A aproximação de Del Fiol com Christian foi gradual, mas redeu um longa que investiga mais do que o trabalho artístico. “Eu tinha interesse não em fazer um registro de artistas em tom de making of ou só de falar da obra, eu queria que a obra fosse o que menos falasse no filme. Me interessava mais entender qual é o bioma, qual é o ambiente que forma três gerações bem sucedidas de artistas”, afirma o cineasta que esteve em Salvador para a pré-estreia do filme e conversou com exclusividade para o A TARDE.
Del Fiol conta que, em 2012, Cristian o convidou para uma viagem para a Tanzânia onde ele iria fazer um trabalho de fotografia de animais selvagens. Naquele momento, o pai de Christian já tinha morrido, ele perdeu vários amigos no Haiti (a partir das várias viagens que fez ao país da América Central e que rendeu o livro de fotografias Nos Jardins do Éden) e além disso os irmão dele o estavam processando por conta do espólio do pai.
“Eu faço uma relação do filme com a literatura. Eu saquei que o Christian estava numa situação muito parecida com a do Riobaldo, personagem do Guimarães Rosa. Ele foi um cara atropelado pela vida, aconteceu muita coisa da qual ele não conseguia se dar conta e precisava de um interlocutor para tentar botar ordem interna nesse turbilhão de emoções que ele estava vivendo. Então eu entendi que eu fazia um papel de ouvinte para esse homem atormentado”, confidencia o diretor.
Cravos se faz, portanto, a partir dos conflitos internos de Christian na medida em que ele segue um outro viés na sua fotografia, buscando na vida animal um outro tipo de matéria-prima já que, até então, ele vinha fotografando pessoas nos seus trabalhos. Mas é claro que suas memórias (e suas aflições) passam pela família e pelas personalidades fortes desses homens e artistas que o precederam, que o influenciaram, mas também o marcaram profundamente.
Luz e sombra
Del Fiol acompanhou Christian em algumas dessas viagens ao continente africano, momento em que o filme que ele queria começava a se definir. “Geralmente os artistas possuem um discurso já muito pronto e muito formatado sobre as coisas e sobre si mesmo. Eu até cheguei a fazer entrevistas tradicionais com ele de frente para a câmera. Mas teve um momento nas filmagens em que a câmera fica de costas para o Christian, uma cena que está no filme inclusive, e aí ele começou a falar do avô, da relação com a família, começou a contar coisas que me interessavam”, pontua o diretor.
Na medida em que o fotógrafo vai se abrindo e se revelando para o cineasta na sua intimidade, o filme vai ganhando corpo de forma a pontuar as relações e cicatrizes que se formam nessas interações. Cravos é repleto de material de arquivo, tanto das fotografias e registros antigos, como as muitas imagens amadoras que o pai de Christian fazia no cotidiano familiar.
Todo esse material, até mesmo o mais prosaico e despretensioso, é capaz de revelar faces muito complexas desses homens e também dos conflitos familiares, com suas brigas, discussões e desentendimentos, que se estabeleciam dentro do lar – algumas registradas e mostradas sem filtros no filme. Mario Cravo, Júnior e Neto, não eram realmente pessoas fáceis com quem lidar, possuíam comportamentos e atitudes muito arredios, mas eram não só artistas geniais, como tinham sua própria compreensão da vida e da família.
O filme nos revela e expõe com muita naturalidade essas facetas. “Eu procuro não higienizar as pessoas, nem ser paternalista com elas. Então eu as abraço, com suas luzes e suas sombras, suas dificuldades, grandeza e mesquinhez, com tudo”, revela Del Fiol.
Homem animal
É muito sintomático também que o trabalho atual que Christian faz fotografando animais selvagens seja tão revelador da sua própria inquietação emocional e sobre seus embates familiares. “Quando está fotografando os chimpanzés, o Christian diz várias vezes: ‘eu preciso chegar mais perto, eu preciso chegar mais perto’. Ele chega mais perto não só dos bichos, mas também das suas dores”, complementa o diretor.
Esse momento do filme é também muito representativo porque o guia, ao falar daqueles animais, diz coisas como “eles não são bons pais”. Um dos chimpanzés, por exemplo, tem um olho machucado, embranquecido, assim como Mario Cravo Júnior, em uma entrevista ao final do filme, mostra também um de seus olhos já deficiente e leitoso, com o dedo em riste, assim como o chimpanzé também o fazia.
São vários momentos desses em que as imagens, tanto de arquivo ou das vigílias e buscas nas selvas africanas, fazem paralelo direto com a família Cravo e sua fauna de personagens por vezes excêntricos, retraídos ou embrutecidos diante da vida e das relações interpessoais.
Ao se aproximar dessas histórias de família – uma família com nome de peso, mas também repleta de aberturas e cicatrizes, como são todas as estruturas familiares –, Cravos observa os espinhos como parte da vida humana e também como reflexo do fazer artístico.
“É um filme que tem muitas vísceras. Tem víscera exposta, tem víscera na foto do Christian, tem víscera na hora que os urubus vão comer a carcaça. É o que o velho [Mario Cravo Júnior] fala: faz parte da vida”, arremata o diretor.
Cravos (Brasil, 2018)
Direção: Marco del Fiol
Roteiro: Marco del Fiol e Tali Yankelevich
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 28/11/2021)