De olhos bem abertos

Laranja
Mecânica
(A Clockwork Orange, Reino Unido/EUA, 1971)
Dir: Stanley Kubrick
A experiência de ver um Kubrick na tela grande é algo
de especial. Isso vale para todos os grandes cineastas e filmes, especialmente
aqueles que sabiam explorar tão bem as potencialidades do som e das imagens em
movimento, como é o caso aqui. Mas a sessão de abertura do Cineclube GlauberRocha, responsável por fazer retornar a aura do cinema clássico para dentro
da sala de cinema nesses tempos de múltiplas telas, contou com uma energia
diferente, um misto de empolgação e saudade.
A morte prematura do querido crítico João Carlos
Sampaio pegou a todos de surpresa, ele que comentaria o filme pós-sessão. Mas a
própria mãe de João estava lá na sessão inaugural para nos lembrar que o
momento não era de pesar e sim de celebração do bom cinema, o gosto maior de
seu filho.
Laranja Mecânica foi escolhido por ele,
dentre as possibilidades do cineclube, para iniciar os trabalhos. Com cópia
restaurada, tinindo de bonita, o longa ganhou na tela uma força incrível, uma
energia que emana das imagens fortes e do tom operístico com que Kubrick rege
um estado de ultraviolência, numa sociedade de cores futuristas com valores e
instituições falidos.
O filme segue o líder de uma gangue de marginais, em
meio a outras tantas que vagam por uma cidade pouco acolhedora. Alex (Malcolm
McDowell) é esse jovem inconsequente, mimado pela família, adorador da música
clássica de Beethoven (em especial da sua Nona Sinfonia), espalhando violência
e anarquia por onde passa, junto a sua fiel trupe de ignóbeis.
Kubrick reveste o filme de uma atmosfera muito
solene ao representar esse mundo marginal como se o filme estivesse
hipnotizado, rendido aos prazeres violentos e grotescos desse grupo de
delinquentes. A música cumpre papel fundamental nesse aspecto, como em tanto outros
trabalhos do diretor (lembremos que seu filme anterior é 2001 – Uma Odisseia no Espaço, em que a trilha
sonora surge quase como um personagem ali).
 

É ela quem reforça, com grandeza, a dimensão avassaladora
dos atos de violência. Tanto aqueles proferidos por Alex e sua turma contra os
desavisados, mas também quando o próprio Alex vê-se vítima de seus companheiros,
após um ato de autoritarismo. Traído e preso, ele passará por um tratamento de “reeducação”
que consiste justamente em assistir, forçosamente, a cenas de agressão e
brutalidade. A violência como cura, doce ironia.
O cineasta transpõe para a tela o universo nonsense extraído do romance homônimo de
Anthony Burgess, com sua linguagem particular e seu olhar cítrico para as
instituições sociais, seja a família, o Estado e a polícia, todos muito infantilizados,
fotografados de forma sempre muito vivaz. Não deixa outra das ironias do filme:
um contraponto entre um universo perigoso com algo quase tolo na forma caricatural
com que nos apresenta a essas instituições.
Exemplo maior desse tom sarcástico está na famosa cena em que Alex
e sua gangue invadem a casa de um velho escritor para agredi-lo e violentar sua
esposa, cantarolando a singela Singin’ in
the rain
. Ou, para ainda ficar no campo musical, quando a amada Nona
Sinfonia de Beethoven causar repulsa em Alex depois de ter sido usada em seu
bizarro tratamento de reintegração à sociedade. 

Se Laranja
Mecânica
é a síntese perfeita da falibilidade de um sistema que não sabe
lidar com os monstros que ela própria fabrica, Kubrick, com seu habitual
perfeccionismo, parece chegar aqui a uma certa maturidade como encenador, irônico
e certeiro como poucos.
 

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