Estranho Caminho / Entrevista com Guto Parente

Em busca de um pai*

No ano passado, o filme cearense Estranho Caminho surpreendeu ao receber todos os prêmios principais da mostra internacional do Festival de Tribeca, nos Estados Unidos. Era o único filme brasileiro em competição e a primeira vez do diretor Guto Parente no evento. Além de eleito melhor filme estrangeiro, venceu os prêmios de roteiro, fotografia e melhor interpretação, para Carlos Francisco.

No Brasil, depois de passar pela Mostra de São Paulo e também pelo Panorama Internacional Coisa de Cinema, agora o filme, já em cartaz nos cinemas brasileiros, recebe uma sessão especial em Salvador, na noite desta terça, 6, com a presença do diretor no Cine Glauber Rocha para conversar com o público ao fim da exibição.

Na trama, um jovem realizador cearense, que mora em Portugal, retorna a sua terra natal para apresentar um filme experimental em um evento de cinema. Aproveita a oportunidade para tentar reencontrar o pai de quem é afastado há muito tempo. Mas é surpreendido pelo lockdown generalizado por conta da pandemia de Coronavírus – o filme se passa, portanto, no início de 2020, quando ainda estávamos começando a entender a gravidade do vírus.

“Eu comecei a escrever o roteiro quando começou o lockdown praticamente. Eu tinha uma inquietação que era mais sobre a questão paterna. Meu pai tinha falecido há dois anos. Quando começou a pandemia, eu me vi nessa situação de estar isolado sozinho no meu apartamento. De alguma maneira, eu senti uma necessidade de me reconectar com meu pai e foi o momento que veio a vontade de fazer esse filme”, revelou Parente em entrevista para A Tarde.

Estranho Caminho mostrou-se, com isso, um dos melhores filmes a retratar o período da pandemia no seu início. David (Lucas Limeira) chega ao Brasil e se hospeda em uma pequena pousada, mas por conta da pandemia, o lugar precisa ser fechado. Ao entrar em contato com o pai (Carlos Francisco), ele pede para passar uns dias no apartamento dele enquanto resolve sua situação.

“Este é um filme intimista sobre um filho e um pai. E eu queria que a pandemia fosse a disparadora da própria narrativa, do próprio encontro dos dois. Só que eu não sabia o que era a pandemia. Ninguém sabia. A gente estava entendendo, descobrindo e se adaptando àquela situação. O filme nunca quis dar conta desse momento, ele estava sempre lidando com aquilo acontecendo na hora e, de alguma maneira, eu fui trazendo para o roteiro a questão do absurdo”, pontuou o diretor.

Pais e filhos

Estranho Caminho, curiosamente, faz paralelo com outro filmes cearense que estreou nos cinemas este ano: A Filha do Palhaço, de Pedro Diógenes. Ali, uma adolescente vai passar um tempo com o pai de quem estava afastada há algum tempo. Mais curioso ainda é saber que Parente e Diógenes não só trabalharam muito tempo juntos no coletivo de cinema Alumbramento, dirigindo vários filmes em parceria, mas também que são primos na vida real.

No entanto, Parente percebe uma diferença no tratamento de ambos os filmes: “Diferente de A Filha do Palhaço, que trata sobre a ausência paterna, a minha questão é mais sobre a incomunicabilidade. Não é tanto sobre a ausência. E eu acho que esse é o ponto-chave na minha relação com meu pai. Eu sinto que a gente se comunicava muito através do cinema, vendo filmes juntos. A gente conversava mais sobre os filmes do que sobre a vida e sobre a nossa intimidade”, confidenciou.

Em Estranho Caminho, a relação entre os dois personagens é de certa frieza. David parece experimentar um sentimento de inadequação no contato com o genitor, enquanto o pai, mesmo há tanto tempo sem ver o filho, se mostra arredio e até mesmo arrogante com o garoto. Implicante, sempre negando as coisas e, ao mesmo tempo, agindo de maneira estranha – passa o tempo todo sentado diante do computador digitando alguma coisa sem parar. A casa dele é uma bagunça, rodeada de livros pelo chão, desorganizada e suja.

Com isso, o filme aproveita para criar todo um clima de tensão, trafegando mesmo pelo cinema de horror – não só pela iminência da morte que a covid-19 trazia no ar, mas pelo próprio comportamento arredio e bizarro do pai. Ao mesmo tempo, Estranho Caminho consegue ser muito engraçado em muitos momentos, tirando boas risadas da plateia a partir de um texto inteligente e muito brasileiro, em meio ao ambiente de incertezas e tensões causadas pela pandemia.

“Essa questão do gênero é algo muito forte no meu imaginário, na formação da primeira cinefilia. Na minha infância, eu ia muito às locadoras com o Pedro, por exemplo, assistindo muitos filmes juntos. E nas locadoras, as fitas eram divididas por gênero. Eu estou apaixonado por muitos filmes de muitos gêneros. E quando eu vou fazer um filme, eu tenho vontade de transitar por vários universos e atmosferas. O meu desafio maior tem sido cada vez mais conseguir balancear isto dentro do filme porque é preciso encontrar o tom do filme e entender como transitar de um momento para outro”, pontuou Parente.

O filme é, portanto, um conjunto muito feliz de escolhas e rotas narrativas bem elaboradas. Trata de uma realidade recente com competência e pertinência, envolve o público com uma história de reencontro familiar – o que também aproxima o filme do melodrama, especialmente na parte final – e ainda mistura gêneros com fluidez e facilidade.

É um dos filmes brasileiros a melhor retratar a pandemia e usar o clima de isolamento e perigo iminente para criar tensão e medo. Mas, principalmente, para fazer seus personagens encararem a si mesmos e os estranhos caminhos de vida.

Estranho Caminho (Brasil, 2023)
Direção: Guto Parente
Roteiro: Guto Parente

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 06/08/2024)

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