Festival de Brasília – Parte VIII

Por Trás da
Linha de Escudos

(Idem, Brasil, 2017)
Dir:
de Marcelo Pedroso

Por Trás da Linha de Escudos, de Marcelo Pedroso, é mais um filme exibido no Festival de Brasília a compartilhar certa dificuldade de lidar com situações de diálogo com o “outro lado”, barreira que tem se intensificado nos tempos sombrios atuais, provocando nas pessoas tal incapacidade dialógica, especialmente na esquerda brasileira e sua inabilidade de ação. Ou, no caso do diretor aqui, de movimento em falso, ainda que a partir de boas intenções.

Pedroso adentra o Batalhão de Choque da polícia militar de Pernambuco para conversar e entender esses profissionais e seu modo de pensamento – em suas falas, o diretor posiciona-se claramente como um militante de esquerda. O Choque é uma unidade policial de elite responsável por conter e controlar as manifestações constitucionais com mais peso e virulência – seu lema é “vencer sempre”. O filme já havia sido apresentado na Bahia na programação do CachoeiraDoc. Em Brasília, as mesmas questões suscitadas antes voltaram agora em dimensão maior. Pedroso fez um filme com o intuito de se aproximar do inimigo, de entender o outro, mas fracassa visivelmente e se enrola em um emaranhado de equívocos e proposições a que o filme se lança, mas não consegue sustentar.

O diretor se coloca como personagem do filme – e por vezes como homem em crise, a partir de encenações de si mesmo para a câmera – enquanto busca interagir e conversar com alguns membros do Choque, assumindo um lugar de permissão para se trafegar e interagir naquele espaço. No entanto, rompendo certa expectativa, o diretor evita qualquer tipo de questionamento mais incisivo para aquelas pessoas das quais ele conquista certa proximidade. E se Pedroso assume uma postura não combativa, até por ter sido “acolhido” na “casa do inimigo”, ele acaba tornando-se sujeito passivo diante da possibilidade de troca que surge ali entre lados antes antagônicos. É certo ainda que essa dimensão polarizada é desnivelada pela própria incapacidade do cineasta em reverter a situação ou, antes disso, de se colocar nas discussões a partir dos seus princípios, mesmo que não sejam compartilhados por aquelas outras pessoas.

Isso porque as coisas se põem, no início do filme, de modo muito claro para todos ali. Numa das primeiras cenas, Pedroso conversa sobre as manifestações no contexto do movimento Ocupe Estelita e diz que ele participou das ações; pergunta ao policial se ele reconhece alguém da equipe do filme que estava lá e a resposta é positiva. As cartas estão na mesa, nada precisa ser falseado ou omitido – ou pelo menos é o que o filme talvez prometa nessa sequência. Mas em seguida o que presenciamos abobados é o acanhamento em levar adiante tal clareza de posições, a partir da chance de ouro que o cineasta conquista de se tornar um pouco mais próximo daquelas pessoas e daquele universo peculiar, cheio de nuances e complexidades – as conversas com a cabo Talita, por exemplo, são riquíssimas e muito reveladoras do que o Choque pode representar para eles, e ela fala com muita sinceridade sobre os sentimentos que seu ofício lhe provoca; mas quando Pedroso tenta ir mais fundo e questioná-la, ela rapidamente vira o jogo, devolve a pergunta e é Pedroso quem se vê confrontado na cena.

Aliás, é possível passar o filme todo esperando que Pedroso faça uma única pergunta a algum dos policias: por que vocês atiram spray de pimenta em alguém que está parado e sentado no chão? – cena de fato ocorrida nos embates do Ocupe Estelita e que é mostrada no filme. Mas esse questionamento nunca chega. Ao contrário, o cineasta participa de experiências de treinamento junto com o batalhão em provas de resistência a gás lacrimogêneo, pega em arma para atirar em um alvo e ainda promove uma sessão de ioga com outros policiais. Há nisso um gesto de aproximação, mas também de total falta de tato por aquilo que representam como imagens dóceis e amansadas, enquanto o que está em jogo é a violência e a truculência desproporcionais da polícia quando se deparam com os manifestantes nas ruas. Há algo de estranho nisso tudo, porém o filme não parece desconfortável com isso, ou pelo menos não leva tal desconforto adiante a fim de aprofundar os dilemas que se põem ali.

Daí que o filme se dirige cada vez mais para o discurso simplista da humanização dos policiais, do entendimento de uma estrutura política maior que rege o trabalho daqueles sujeitos, da condição do trabalhador que recebe ordens verticais, quando não apostando em alegorias e performances infantis e ingênuas – usando, mais uma vez a bandeira nacional, como ele já havia feito em Brasil S/A. E isso nada mais é do que reforçar um discurso oficial que se blinda o tempo todo de responsabilidades duras pelas ações violentas em que o Choque age e das quais somos testemunhas em muitos exemplos que nos chegaram aos olhos ultimamente. Daí que se pergunta: o que o filme ganha com essa escolha? Mais do que um espaço de neutralidade, Por Trás da Linha de Escudos acaba sendo desfavorável para o realizador, para seu ponto de vista, para sua proposta na medida em que os policias acabam dobrando o cineasta na frente da câmera.
Poucos dias antes, no Festival de Brasília, Construindo Pontes, outro filme produzido a partir de um encontro de lados antagônicos, uma filha e um pai, sendo ela a própria diretora do filme, Heloísa Passos, apresentou essa mesma dificuldade. Enquanto o pai defendia calmamente o projeto político dos militares durante a Ditadura, Heloísa não conseguia estabelecer um diálogo de contraposição que não fosse calcado na ira e na destemperança. Refugia-se, ao fim, no afeto – afinal não se pode esquecer que aquele é seu pai – para terminar o filme de modo aparentemente apaziguador. Não há de se negar a coragem de Pedroso em apostar em tal empreendimento de encontro. Mas se os movimentos que Por Trás da Linha de Escudos parece querer promover são todos castrados, vemos o filme andar para trás e não adiante.

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