Festival de Brasília: Salomé

Depois de exibir filmes calcados em um naturalismo mais palatável, mesmo quando apontava para temas sobrenaturais, com Salomé a competição de longas do Festival de Brasília alcança um outro patamar narrativo, apostando numa fricção mais provocadora tanto em termos estéticos quantos identitários naquilo que coloca em cena. Este é segundo longa-metragem do pernambucano André Antônio que aporta no festival apresentando segurança e vigor criativo.

O filme acompanha o retorno de Cecília (Aura do Nascimento) para casa, depois de se tornar uma ícone da moda em São Paulo. É recebida pela mãe (Renata Carvalho) e amigos próximos e logo se envolve com João (Fellipy Sizernando), um antigo vizinho. Nas festas e baladas alternativas de Recife, os dois iniciam um namoro tórrido e ele oferece a ela um estranho líquido verde para cheirar como entorpecente. Cada vez mais envolvida na relação, Cecília adentra um universo onírico que se mostra também arriscado, um misto de desejo e mistério embalado por um clima de sedução deliciosamente perigosa.

Logo descobriremos que o rapaz faz parte de uma misteriosa seita que cultua a mítica figura bíblica de Salomé, cujo retorno é esperado ao mundo contemporâneo. Criaturas alienígenas não demoram a aparecer como entidades responsáveis pela seita, e uma estética kitsch acentua o estranhamento com que todos esses elementos parecem coexistir em certa harmonia no mundo real e concreto, apesar da suspeita de algo errado no ar.

André Antônio faz um filme de marca muito única ao criar um universo entre o místico e o insólito, beirando o horror e passando também pelo melodrama, banhado em cores quentes e luz neon, sem medo de enveredar pela fantasia ou de cair no ridículo. Mais do que isso, não pesa a mão em nenhum desses gêneros, apesar de suas marcas estarem estampadas no filme de modo muito frontal e talvez seja essa honestidade estética que torna o filme tão agradável na sua bizarrice.

Ele abraça ainda a cultura queer e as vivências de pessoas LGBT+ daquele microcosmo, sem fazer disso uma bandeira meramente militante. A própria protagonista é uma mulher trans, mas o filme não precisa discutir a questão abertamente, nem impor um debate inserido nas dinâmicas entre os personagens. Cecília e João transam com liberdade e sem neuras, seus corpos nus aparecem em tela nunca como uma declaração de princípios, antes como indivíduos desejantes que são. A simples presença desses corpos em tela, explicitando anseios sem constrangimentos, perfaz uma postura política forte o suficiente como algo desafiador das normatividades.

Tais elementos já estavam presentes no longa de estreia do diretor, intitulado A Seita. Agora ele amadurece muitas dessas ideias e consegue criar uma roupagem mais consistente, com um roteiro coeso e redondo, também porque os personagens soam mais palpáveis e cativantes – a relação de Cecília com a mãe, por exemplo, passa pelo afeto e cumplicidade, sem que a genitora deixe de lado as preocupações e neuras comuns de uma mãe, também apegada a seu lado religioso.

Mas Salomé possui também uma cadência mais lenta e, num filme de duas horas, cria um ritmo bem arrastado, sem contar quando não dá voltas em torno de si mesmo a partir da dinâmica entre os encontros sensuais do casal, seguidos de momentos de afastamento e pequenas brigas entre os dois. Há de se entender que até isso faz parte da assinatura inebriante do jovem realizador pernambucano, mas ele também assume o risco de fazer um filme capaz de perder o espectador antes do seu fim, que não é necessariamente catártico, apesar de uma revelação final. Ainda assim, é louvável que Salomé sustente uma proposta narrativa tão particular do início ao fim, com pulso firme e certa vontade de quebrar expectativas sobre si.

Salomé (Brasil, 2024)
Direção: André Antônio
Roteiro: André Antônio

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos