Festival de Brasília: Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá

Depois de um filme em que a protagonista busca encontrar a terra onde sua mãe vivia, outro em que o filho retorna ao interior de sua infância para ser confrontado com a continuidade do trabalho do pai, o terceiro longa apresentado na competição do Festival de Brasília continua na toada familiar, perfazendo um interessante processo de busca, dessa vez no contexto das vivências e da cosmovisão indígena. Pois em Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá, a cineasta Sueli Maxakali quer conhecer seu pai que vive em outra aldeia, andarilho sem pouco específico.

Junto com o companheiro Isael Maxakali, também cineasta, mais o reforço dos não-indígenas Roberto Romero e Luisa Lanna na direção, Sueli empreende um processo de busca que, no caso daquela comunidade em particular, antes de ser voltado para o encontro físico, empreende uma busca pela retomada da narrativa. Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá é essencialmente um filme oral, como dita a tradição milenar dos povos originários e como traço constitutivo do cinema que o casal indígena tem realizado nos últimos anos.

Sueli e Isael têm se firmado cada vez mais no cenário do cinema independente brasileiro como cineastas engajados na produção de imagens e imaginários ligados às suas tradições, lutas e discursos (a exemplo do ótimo Nũhũ Yãgmũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!), mas especialmente na conformação de uma História dos povos nativos, partindo das especificidades e experiências particulares de sua aldeia (que podem espelhar certamente outras comunidades e vivências similares).

Eles fazem parte de uma geração, como muitos outros cineastas indígenas espalhados pelo Brasil, que aprendeu a manejar os artefatos técnicos da prática audiovisual e passaram a fazer um cinema disposto a desvelar o cotidiano de suas existências, suas vicissitudes e práticas, seus ritos e costumes, bem como os enfrentamentos e questões urgentes que estão na pauta do dia desses povos. Mais do que forjar uma autoria específica, estes são filmes que empreendem uma criação narrativa imbuída de um sentido “indigenista”, se assim podemos colocar: possuem uma relação mais orgânica e menos intransigente com o passar do tempo, está baseado na troca oral das histórias e experiências, exercitam a escuta, especialmente dos mais velhos; cozinham, pintam, cantam e contam com a mesma toada dos afazeres do dia a dia.

Daí que a experiência de ver Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá exige do espectador uma outra relação com a imagem e som de cinema, ao mesmo tempo que o filme tem a nos oferecer um recorte muito específico da constituição dessa família, mais os interpostos históricos que influenciam na formação e no rompimento dos vínculos sanguíneos dos indivíduos. A dinâmica da aldeia dos Maxakali é atravessada pela conquista recente da demarcação daquela terra indígena – a comunidade situa-se próximo ao município de Teófilo Otoni, no norte de Minas Gerais. E a separação entre pai e filha, que se deu ainda na primeira infância de Sueli, remonta ao período da Ditadura Militar em que muitos indígenas foram cooptados para servir na guarda policial, brutalmente separados de suas famílias.

Tudo isso atravessa o filme na fluência do cotidiano e no desejo latente de reconstrução dos laços. Sueli não via o pai há muito tempo, mas nem o filme cria uma grandes expectativas em torno desse reencontro, não utiliza artefatos do melodrama para dimensionar essa relação familiar abalada pelas circunstâncias da vida (e da História), nem se preocupa em construir arcos dramáticos com pontas que vão se costurando, recurso narrativo que estamos acostumados a ver até mesmo em filmes documentários. As vivências, depoimentos, atitudes e a vida cotidiana daqueles sujeitos seguem em conformidade com o tempo das descobertas e com os deslocamentos possíveis.

Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá (Brasil, 2024)
Direção: Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luisa Lanna
Roteiro: Sueli Maxakali, Roberto Romero e Tatiane Klein

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