Festival do Rio – parte VI

Não é um Filme Caseiro (No Home Movie, Bélgica/França, 2015)
Dir: Chantal Akerman

Belíssima surpresa o canto de cisne de Chantal Akerman, grande cineasta que nos deixou há poucos dias. Não é um Filme Caseiro é sobre a morte de sua mãe, judia que sobreviveu a Auschwitz, Natalia Akerman. É um belo filme de despedida, em mais de um sentido, ressignificado agora pela partida repentina da diretora belga.

Incrível como uma cineasta de encenação tão rígida tenha feito filme tão amoroso como esse, sem abandonar a rigidez. Essa preferência formal está lá nos longos planos estáticos, na longas conversas casuais entre mãe e filha e mesmo nas aparições rápidas de conversas via Skype.

Natalia tem uma presença forte não muito pelo que ela diz – havia uma impressão de que o filme se concentraria muito na fala. Mas a preferência é pela imagem de uma mulher que se presentifica quando menos esperamos, seja através de sua entrada repentina no quadro, seja pela voz ou sussurros entreouvidos por entre portas e paredes. Ela vai definhando diante da câmera com o passar do tempo, inexorável e cruel, debilitada pela idade, mas ainda assim resistente, resiliente diante do fim. E Chantal parece observar com respeito e admiração esse último momento. Não é um Filme Caseiro trata-se de um belo registro sobre um ato de enfrentamento.

O Conto dos Contos (Il Racconto dei Racconti, Itália/França/Reino Unido, 2015)
Dir: Matteo Garrone

Enveredando pela narrativa dos contos fantásticos, o cineasta italiano Matteo Garrone investe agora num filme muito portentoso em termos de construção de imaginário. Uma pena que, na maior parte das vezes, ele esteja esvaziado de força narrativa, de capacidade de envolver o espectador e de extrair daquelas
histórias pontos de interesse maior.

O Conto dos Contos é baseado num livro célebre do escritor Giambattista Basile e passeia por três núcleos narrativos que se intercalam durante o filme. São poucas as histórias que de fato saltam aos olhos, sendo a primeira delas a mais interessante: uma rainha (Salma Hayek) não consegue engravidar e pede a ajuda de uma espécie de feiticeiro. A solução encontrada tem desdobramentos surpreendentes e, até certo ponto, causam certo fascínio pelo que virá a seguir. Mas logo as histórias tornam-se burocráticas, anódinas – há a de um rei que se apaixona por uma velha, pensando se tratar de uma jovem camponesa; e de outro obcecado por um estranho animal. Garrone parece despender maior empenho na imagem fabular encerrada em si mesma do que naquilo que ela pode ter de representativa numa história.

Maravilhoso Boccacio (Maraviglioso Boccaccio, Itália/França, 2015
Dir: Paolo Taviani e Vittorio Taviani

Em contraponto a O Conto dos Contos, interessante com outros diretores italianos também arvoraram-se pelas múltiplas histórias, saindo-se bem melhores. Os mestres e irmãos Paolo e Vittorio Tavaini foram beber do clássico O Decameron, de Giovanni Boccaccio, sem inventar muito a história já conhecida: na região italiana de Florença, nos anos sombrios da peste negra, dez jovens enclausuram-se num castelo a fim de se protegerem.

Passam o tempo contando histórias e entretendo os demais. O que falta no filme de Garrone tem em grande medida aqui: casos que se valem mais por seus entremeios narrativos e não pelo visual ou algo que lhes tome a atenção.

Acabam tornando-se contos morais, dramáticos ou cômicos, sobre amor, traição, adultério, hipocrisia etc; sobre as fragilidades e peculiaridades da alma humana, enfim. É certo que o filme não traz a força criativa do cinema dos irmãos Taviani – que mesmo recentemente demonstrou vigor em César Deve Morrer –, mas certamente evidencia a precisão dos diretores como encenadores maduros.

Anomalisa (Idem, EUA, 2015)
Dir: Charlie Kaufman e Duke Johnson

Depois de uma péssima investida pela direção em Sinédoque, Nova York, o cineasta e ótimo roteirista Charlie Kaufman investiu na animação a partir de um texto seu, em parceria com o diretor e animador Duke Johnson. Poderia ser mais uma tentativa de mostrar serviço em outra seara, mas Anomalisa tem o melhor de Kaufman: roteiro afiadíssimo na construção de personagens e diálogos maduros, muitas vezes nonsense, um belo filme de gente melancólica.

Aqui ele deixa de lado também possíveis invencionices narrativas ou ideias esdrúxulas (o que lhe rendeu, no fundo, ótimos roteiros, como os de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças e Quero Ser John Malkovich). A própria ideia de animação também parece um tanto gratuita, o filme não tem nada que ele não pudesse fazer em live action, nem mesmo no sentido de explorar a técnica do stop motion.

Os diretores preferem fazer de Anomalisa um estudo psicológico de personagens, numa animação para adultos, não só por algumas cenas e insinuações mais quentes, mas principalmente pela densidade e fraquezas emocionais que os tipos humanos carregam. Na trama, o escritor de autoajuda Michael Stone (voz de David Thewlis) chega na cidade de Cincinnati para lançar seu mais novo livro. Vive uma rotina familiar que não lhe rende muitas alegrias, estágio na vida que mistura total desânimo e vontade de recomeçar algo novo.

Michael aproveita para visitar um antigo amor do passado, mas envolve-se também com uma mulher (voz de Jennifer Jason Leigh) hospedada no mesmo hotel que ele. A maneira como essas pessoas revelam-se na história, cada qual expondo suas fragilidades e anseios, é de uma humanidade tão sincera quanto dolorosa, apesar do filme ter também boas doses de bom humor.

Há, em especial, uma cena de sexo filmada da forma mais despudorada possível, gente comum querendo ter e dar prazer, sem moralismos, ainda que os personagens estejam tomados de timidez e inquietações. O filme caminha por um trajeto psicológico complexo, mas consegue captar, em essência, asseios de gente de carne e osso através de bonecos de massinha.

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