Gerado pelo sertão*
A produtora baiana Plano 3 Filmes parece ter se especializado em fazer filmes que retratam crianças e/ou jovens em período de amadurecimento, geralmente filmados no interior da Bahia, no sertão brabo. Recentemente conquistaram prêmios importantes com Saudade Fez Morada Aqui Dentro, dirigido por Haroldo Borges, depois da grata surpresa inicial que foi Jonas e o Circo Sem Lona (2015), este conduzido por Paula Gomes.
Mas em meio a esses dois filmes, eles chegaram a fazer um outro que talvez tenha passado despercebido por algumas pessoas. Trata-se de Filho de Boi, também dirigido por Borges, e que agora ganha lançamento comercial nos cinemas brasileiros. O filme foi lançado internacionalmente no Festival de Busan, na Coreia do Sul, em 2019. No ano seguinte, quando chegou ao Brasil, já era período de pandemia, então foi exibido em festivais online ou de formato híbrido.
Esta é, portanto, uma ótima oportunidade para (re)ver o filme nos cinemas e atestar a delicadeza no tratamento de questões áridas, para além da coesão narrativa que os três filmes citados apresentam em seu conjunto. Filho de Boi remete inevitavelmente a Jonas e o Circo sem Lona – Paula Gomes é uma das roteiristas aqui, além de ocupar outras funções – uma vez que a presença do circo como mote transformador está no centro da trama, através da história de João (João Pedro Dias), garoto que vive no sertão baiano.
Com a chegada de um circo no local, ele se mostra curioso não apenas pelo espetáculo, mas pela própria vivência neste ambiente. Fica mesmo tentado a se juntar e partir com a trupe circense, abandonando o convívio com o pai viúvo que trata o garoto com rigidez, preparando-o para uma vida de trabalho duro.
Filmado na pequena comunidade de Poço de Fora (distrito de Curaçá, região do Vale do São Francisco, a 80km de Juazeiro), Filho de Boi mantém o registro do naturalismo, marca de muitas produções que retratam o sertão a partir de um olhar cru e incisivo. A diferença aqui é que o trabalho de Borges, junto ao grupo de colaboradores fiéis de sua produtora, possui um sentido muito caro de afeto e coletividade, expressos na própria narrativa, mesmo diante das dificuldades e asperezas que fazem parte da vida daqueles personagens.
João vive uma rotina simples, com muito trabalho cotidiano na lida dos poucos animais que fazem parte do bens da família e de onde eles tiram o sustento. Também brinca e se diverte com os amigos locais em meio às paisagens bucólicas daquele pedaço de sertão. Mas há algo nele de melancólico e incompleto que ganha uma faísca de esperança quando o circo aparece naquela paisagem.
O sonho e a realidade
O universo do circo, de modo geral, é sempre retratado pelo viés da fantasia, do sonho e do lúdico. Ao trazer o espetáculo circense para o sertão baiano, Filho de Boi, assim como o longa anterior da trupe, acrescenta um tom de realidade pulsante que torna a situação mais complexa e, por isso mesma, mais humana e crível. O circo Papa-Léguas é de pequeno porte e possui poucos, mas fiéis e apaixonados mantenedores. Eles, inclusive, estão em busca de um novo palhaço para se incorporar ao time e ampliar os números apresentados.
Para João, o circo passa a ser uma forma outra de ofício. Não era um desejo nutrido desde cedo pelo garoto – e aqui temos uma grande diferença em relação a Jonas e o Circo sem Lona, já que o protagonista deste filme vinha de uma família circense e sempre nutriu desde cedo o apreço e a vontade de viver naquele ambiente e se tornar artista – o ator Jonas Laborda marca presença aqui também como outro dos integrantes do circo.
Com João, mais do que um sonho, o circo revela-se como uma possibilidade de fuga da sua realidade – muito embora o trabalho e o dia a dia do circo seja também retratado com certa dureza no filme, sem glamour. A vida ali não é só alegria e divertimento, e o próprio aspecto nômade daquele trabalho requer sacrifícios e a necessidade de deixar para trás uma vida antiga.
Com isso, o filme amplia os horizontes para se pensar a ideia de partida, algo que também aparece bastante no imaginário sertanejo como forma de busca de oportunidades – está inscrita aí toda uma onda de migração e o abandono dos espaços rurais em direção aos centros urbanos.
Pais e filhos
Entre os desafios de se aclimatar ao ambiente e aos afazeres circenses e também diante do entendimento dos seus próprios desejos e anseios, João vai ter que enfrentar ainda a dureza das posições do pai. O experiente ator Luiz Carlos Vasconcelos confere dignidade bruta, mas também boas doses de um sentido de proteção genuína, a este homem que sobrevive no sertão com muito pouco, tendo de criar o filho sozinho e fazer dele o homem que precisar ser para enfrentar um mudo de dores e durezas.
Diferente de Jonas, em que o embate do personagem se dava com a mãe solo, aqui a aproximação de João com o circo tem toda a desconfiança e recusa do pai. Na sua acolhida embaixo da lona, João vai contar com o apoio de Salsicha (Vinicius Bustani), um dos principais artistas do Papa-Léguas. Não deixa de ser uma relação paternal que se estabelece entre eles porque é Salsicha quem, aos poucos, vai introduzindo João àquela realidade e seus pormenores, inclusive na maneira do garoto se soltar – para o trabalho, para a vida.
Com isso, Filho de Boi repensa também o lugar da masculinidade sertaneja diante da constituição do indivíduo – este que João está aprendendo a ser –, da arte e do sustento. Enfim, de uma vida que se forja na aridez da paisagem bucólica, áspera, mas que dá régua e compasso para aqueles que foram gerados pelo sertão.
Filho de Boi (Brasil, 2020)
Direção: Haroldo Borges
Roteiro: Haroldo Borges e Paula Gomes
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (04/08/2024)