Pão, circo e sangue*
A precisão histórica não é mesmo o forte dos filmes de Ridley Scott. O diretor britânico possui uma vasta carreira dentro do cinema mainstream hollywoodiano e seus filmes passaram a se encaixar cada vez mais na uma lógica do blockbuster, repletos de concessões históricas e foco no puro entretenimento. Se essa é uma imposição dos grandes estúdios ou um caminho mais confortável assumido por ele, não saberemos dizer.
O certo é que Gladiador II, continuação do seu predecessor lançado em 2000, segue a cartilha do épico grandioso e também está mais interessado nos dramas pessoais de figuras emblemáticas da Roma Antiga do que em uma reconstituição didática dos evento reais retratados nos filmes. Até mesmo repete uma série de estratégias narrativas já vistas no primeiro longa.
Temos mais uma vez um escravizado, que atende pelo nome de Hanno (Paul Mescal), levado como mercadoria depois de perder a mulher (e o sonho de construir uma família) em uma batalha que devastou sua comunidade. A trama logo vai revelar que ele possuía um futuro promissor na chefia do Império Romano tempos atrás, mas teve de abandonar tudo para salvar a própria vida. De volta ao centro do poder imperial, passa a lutar no Coliseu como gladiador, oferecendo entretenimento sanguinário ao povo em troca de sua sobrevivência.
Ele é agenciado por Macrinus (Denzel Washington), mercador de gladiadores com grande influência no Senado e também dentro da corte real, agora chefiada pelos irmãos gêmeos Geta (Joseph Quinn) e Caracalla (Fred Hechinger), figuras tão caricatas quanto desprezíveis na sua insanidade quase infantil.
A trama se passa 16 anos após os acontecimentos do primeiro filme (que chegam a ser resumidos em flashback nos minutos iniciais de Gladiador II), e Roma está ainda mais mergulhada em sordidez e crise, já que os novos governantes comandam tudo com mão tirânica e pouco apreço pelo bem-estar do povo.
Tanto que a jornada de ascensão e vingança de Hanno é muito similar à de Maximus, personagem de Russell Crowe no filme anterior, figura constantemente evocada aqui. Mas quem está de volta à cena é Lucilla (interpretada pela mesma Connie Nielsen), filha do ex-imperador Marco Aurélio, que trama a deposição dos gêmeos autoritários com a ajuda de Acacius (Pedro Pascal), o novo general das tropas do exército romano.
Inconsistências
Já que o cuidado com os dados históricos foi jogado às favas, restava a Gladiador II embalar bem os dramas pessoais desse time de feras que se digladiam com armas mais sofisticadas em prol do poder, mas não é isso que vemos aqui. Além de repetir motes já usados no filme anterior, é uma pena que os personagens sofram de certa inconstância nos seus atos.
Hanno começa o filme feliz com a vida campestre que leva, sem pretensões de reaver seu antigo lugar de destaque. Quando cruza os portões de Roma já prisioneiro, chega a declarar que “esta cidade é doente, tudo apodrece aqui”, revelando seu desprezo pelos jogos de poder e ganância que corrompem o homem. Porém, da metade em diante, assume a postura de herói em busca de vingança que o filme precisa para sustentar seu lugar de protagonismo.
Lucilla, como figura feminina sempre relegada aos bastidores do poder, reconhece a verdadeira identidade de Hanno e, na tentativa de fazer justiça à sua linhagem real, arma para lhe colocar no lugar devido. Mas quando é desmascarada em seus planos, continua livre para articulá-los com Acacius. Por sua vez, Macrinus quer se aproximar do poder, mas acaba tendo de liquidar justamente os poderosos que estão em seu caminho, isso quando não investe na luta contra um gladiador a fim de assegurar sua vida – quando poderia pensar em uma saída mais inteligente.
Falta ao filme um cuidado maior na costura desses dramas todos, uma vez que o lado sanguinário precisa falar mais alto. E essa tem sido a tônica dos filmes de Scott há um bom tempo. Depois de ter vivido uma fase magistral dos anos 1970 aos 1990 (o cineasta dirigiu clássicos como Alien, Blade Runner e Thelma & Louise), seus trabalhos das últimas décadas têm deixado muito a desejar.
Coliseu aquático
Os últimos filmes do diretor foram o desastroso Casa Gucci e o incipiente Napoleão. Este último compartilha com o novo filme o atropelamento dos fatos históricos em prol da fluência narrativa e de certa conveniência ao espetáculo cinematográfico (eles dividem inclusive o mesmo roteirista, David Scarpa).
No caso de Gladiador II, a ideia de espetáculo está incutida no próprio tema do filme, e trata-se não apenas do resgate de uma obra de sucesso dos anos 2000, como também um investimento em algo de proporções maiores em termos de produção e reconstituição de época.
Os sonhos de grandeza do diretor envolvem não apenas animais recriados com efeitos especiais (os beduínos são um tanto estranhos, mas há um rinoceronte muito bem composto digitalmente), além da já aguardada batalha naval reproduzida dentro do Coliseu – e com direito a tubarões famintos.
É esse tipo de exibicionismo visual se escancara aqui. Eventos como esse, que tornavam a arena de guerra mais intricada e cheia de obstáculos mortais excitantes aos olhos do público mais sedento, existiam de fato na época – inclusive o Coliseu aquático. Mas esse tipo de estratégia narrativa possui menos articulação com a engenharia da trama e mais uma vontade de soar impressionante, sem o adicional de um roteiro bem escrito e mais coeso.
O clímax do filme também não é tão forte quando parece. O confronto entre dois exércitos antes aliados parece descabido na lógica das disputas comandadas por figuras de poder com influências distintas e desproporcionais. Mas, no fundo, nada disso importa muito quando o assunto é carnificina e espetáculo para os povos e espectadores.
Gladiador II (Gladiator II, Reino Unido, 2024)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: David Scarpa
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 17/11/2024)