Veredas da violência*
O sertão vai virar… favela. Essa não é uma máxima que lemos na obra-prima de Guimarães Rosa, mas que vislumbramos na recente adaptação para o cinema de Grande Sertão: Veredas, obra-prima da literatura brasileira escrita pelo escritor mineiro. Coube a Guel Arraes, um pernambucano radicado no Rio de Janeiro, com sua larga experiência na TV e no cinema popular, o comando da atual transposição para as telonas que reinventa um imaginário sertanejo na violenta periferia urbana, controlada por forças milicianas e bandidos fora da lei em constante disputa.
Neste mundo distópico e futurista, encontramos os icônicos personagens Riobaldo e Diadorim interpretados, respectivamente, por Caio Blat e Luisa Arraes (ela, filha do diretor). Companheiros na vida real, já estavam familiarizados com o texto roseano, pois enceram no teatro o espetáculo baseado no livro, idealizado pela dramaturga Bia Lessa – o que gerou um filme recente, O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, assumindo completamente o formato teatral.
A releitura de Arraes, por sua vez, possui uma roupagem muito mais contemporânea e arrojada. Ao reimaginar o sertão como uma grande favela em que bandidos e militares lutam pelo poder, o diretor resgata a trágica história de amor entre Riobaldo e Diadorim a partir do contexto de guerra civil. A dura realidade urbana brasileira ganha ares de filme policial anárquico – em alguns casos lembra uma espécie de Mad Max à brasileira –, com ação frenética e violência constante.
“O Guel tem uma mania muito específica de dirigir porque ele é aquele diretor que tem toda a cena na cabeça. Ele já construiu tudo”, confidenciou Luis Miranda em entrevista exclusiva para A Tarde. Na trama, o ator baiano vive Zé Bebelo, espécie de líder das forças militares que busca colocar ordem na cidade – que passou a se chamar Grande Sertão. “É como se o agreste tivesse crescido de maneira tão absurda e desordenada que o sertão hoje é uma grande cidade também”, explicou o ator.
Com um roteiro escrito em parceiro com outro grande nome do cinema e da TV, o gaúcho Jorge Furtado, Arraes transpõe a trama e suas alegorias para um outro contexto, mas mantém intactos elementos originais, como o próprio texto de Guimarães Rosa e o desenho arquetípico dos personagens. Todos declamam suas falas retiradas integralmente de passagens do livro, com aquela prosa truncada, repleta de regionalismos e termos criados pelo próprio autor na sua imersão pelo interior do Brasil.
Isso faz de Grande Sertão um filme muito peculiar em que a tradição e a atualidade andam de mãos dadas. Não é um filme fácil, mas certamente trata-se de um mergulho profundo e complexo nos meandros do poder que cercam grandes metrópoles brasileiras, mais claramente associada ao Rio de Janeiro.
O anti-herói nacional
Riobaldo é quem narra essa história, passando em retrospecto sua trajetória em que, de professor para crianças, acaba se envolvendo no grupo de bandidos liderados por Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi). É ali que ele reencontra Diadorim, já inserido no bando, com quem já havia esbarrado quando criança.
Agora, mais velhos, eles parecem de alguma forma conectados, e Riobaldo não esconde a adoração que sente pelo amigo, junto com a vergonha de parecer amar outro homem – esse aspecto andrógino, sustentado na figura de Luisa Arraes, mantém-se como um segredo e também motivo de angústia existencial do protagonista-narrador.
Mas em meio aos conflitos pessoais e sentimentais, a realidade brasileira com suas contradições e mazelas são outro eixo importante do filme. Nesse sentido, Zé Bebelo torna-se um personagem fundamental para a história. Líder das forças militares que tentam livrar o país da violência e da bandidagem, acaba se somando a uma complexa rede de corrupções e anseios políticos, fazendo girar a roda das ambições.
“Ele não é o Capitão Nascimento. A gente não está falando de um grande herói, ele está em um outro lugar. Ele é o anti-herói brasileiro. É um lugar mais crível, mais possível porque, apesar de errar, ele tem a possibilidade de se redimir e realmente repensar a sua trajetória”, analisou Miranda.
O ator pontuou também como a construção de seu personagem se deu a partir de uma dicotomia entre o homem militarizado, durão, e um outro viés mais clownesco e bufão. “Construído dessa forma, o Zé Bebelo propõe uma releitura da trajetória do herói e do mártir”, arrematou o intérprete.
Alegorias sertanejas
Miranda destacou ainda o trabalho de Arraes a partir de uma chave narrativa que é a alegoria, algo que já aparecia em outra obra ambientada no cenário sertanejo: O Auto da Compadecida, grande sucesso do cinema e da TV, levado a cabo por Arraes há mais de 20 anos, ainda um dos filmes brasileiros mais icônicos das últimas décadas.
“Os personagens do Guel nunca estão em um plano só do realismo. Eles precisam pontuar certa fantasia. O Guel tem uma maneira muito fabulosa de contar as coisas. Em Grande Sertão ele não ia fugir disso”.
O ator fala isso a partir da noção de imprevisibilidade que cerca os personagens, surpreendentes a cada nova reviravolta porque vão se transformando até o final do filme. Nesse campo simbólico, os tipos que povoam Grande Sertão, encapsulados pelo imaginário de Guimarães Rosa, representam, cada qual, universos muito ricos e repletos de possibilidades, o que prova a longevidade e o potência artística do material original.
Há nesse caldeirão de referência e indicativos o diálogo com as milícias no Rio de Janeiro, o grupo de bandidos como os novos jagunços, o mal como possibilidade de vitória (através do pacto fáustico sugerido por um dos bandido do bando, vivido por Eduardo Sterblitch), a desconstrução dos gêneros sexuais e o amor como forma de enfrentar as mazelas do sertão grande.
Há ainda a verve pop de Guel Arraes que nunca deixa o filme ficar arrastado – ele tem a energia dos melhores produtos televisivos –, acrescidos da complexidade dos temas e situações que se acumulam na trama. Nem sempre parece fácil assimilar as muitas camadas e ideias que estão por trás das atitudes e dos discursos dos personagens, mas eles são também hipnóticos, sempre fascinantes de acompanhar e registrar.
Grande Sertão (Brasil, 2024)
Direção: Guel Arraes
Roteiro: Guel Arraes e Jorge Furtado
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 09/06/2024)