Homem, animal sensível

Boi Neon (Idem, Brasil/Uruguai/Holanda, 2015)
Dir: Gabriel Mascaro
O cinema de Gabriel Mascaro tem clara predileção pelo tom observacional, aquele menos das curvas dramáticas e mais do olhar atento sobre certa realidade e rotina, sobre gente palpável, extraindo dali certas pulsões de vida. Era assim desde Avenida Brasília Formosa, passando pelo rico estudo da servidão profissional que é Doméstica. Com Boi Neon não é diferente, mas encontramos aqui um cineasta mais maduro na maneira de construir a complexidade de seus personagens e do espaço onde eles trafegam.
Seguindo esse raciocínio, é possível fazer uma relação criativa com o ótimo filme anterior de Mascaro, Ventos de Agosto. Ali, começava-se com a observação atenta da rotina aprisionadora de uma vila de pescadores, mas que, de repente, abala-se com uma ruptura narrativa que joga o filme para outro lugar, aponta para outras direções, para a estranheza da vida comum.
Agora, Mascaro retorna à observação mais pura, aparentemente sem rupturas (narrativas), o que poderia ser visto como um passo para trás nesse tipo de proposta de contemplação. No entanto, olhado com atenção, Boi Neon revela um diretor mais apurado na formatação de personagens que, dentro de suas idiossincrasias, talvez revelem o equivalente de uma ruptura, só que agora na ordem da dramaturgia, da encenação dos corpos no espaço. No fundo, há pelo menos três questões que ele consegue engendrar nessa construção: a exposição de corpos desejosos, a reconfiguração dos espaços e a desconstrução do gênero.
Iremar (Juliano Cazarré) é um peão que trabalha por trás das vaquejadas, cuidando dos bois e os preparando para entrar na arena. É seguido de perto pela pequena Cacá (Alyne Santana) e outro peão, Zé (Carlos Pessoa). A garota é filha de Galega (Maeve Jinkings), caminhoneira que vez ou outra participa de shows performáticos. Quem prepara o figurino dela é Iremar, e logo o filme nos informa que aquele homem “chucro” é fascinado pelo mundo da costura.
É assim que os papeis canônicos previamente destinados a homens e mulheres ganham tratamento inusitado em Boi Neon. Iremar não tem inclinações homossexuais, assim como Galega não precisa assumir postura de “machona”. Mais à frente entram na trama um peão (Vinícius de Oliveira) com apelo metrossexual (cuida dos longos cabelos alisados com maior afinco) e também uma grávida, revendedora de cosméticos, que também é guarda noturno de uma fábrica.
É com naturalidade que o filme nos apresenta esses personagens naquilo que eles possuem de delicadeza e aridez, sem esconder os desejos – sexuais, matérias, sentimentais – que pulsam de seus corpos. O filme os põe à mostra, e nenhum deles tem receio de revelar essa essência. Boi Neon não esconde, apenas observa para melhor entender sua complexidade, justo nesse lugar que aparentemente afastaria certa sensibilidade que está, é claro, mais no olho de quem assim o vê.
E como acontecia no longa anterior de Mascaro, o universo ao redor é filmado sem pretensões de exotismo, vendendo imagens artificialmente belas. É o tipo de entendimento que está na incrível fotografia “cotidiana” captada pelo mexicano Diego García, capaz de revelar um Nordeste mais cru e mesmo melancólico. O ambiente serve ao filmes como lugar palpável e não como alento estético.
Mas o espaço ocupado aqui é também ele ressignificado, uma vez que àqueles personagens são reservados os bastidores do rentável agrobusiness. Toma-se banho num espaço improvisado de pano amarrado ao caminhão; descansa-se em redes arranjadas; come-se e cuida se do corpo perto do pasto; Galega se depila ali mesmo na boleia do caminhão e quando consegue sexo, faz ali mesmo ao lado dos bois.

É nesse microcosmo muito especial e singular que Boi Neon encontra lugar para aproximar a figura humana de uma essência animal, primitiva na forma de se mostrar e ocupar terreno. A cena de Iremar amansando um boi sob um filete de luz produz uma bela rima visual com a incrível e delicada cena de sexo dele com a mulher grávida; há delicadeza e tesão ali, ao mesmo tempo. É esse lugar da sensibilidade apurada para as coisas do homem animal que o filme traduz tão bem.

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