Homem com H

Sangue brasileiro*

As cinebiografias de personalidades artísticas brasileiras lançadas nos últimos anos têm escolhido fazer um recorte temporal específico para falar de seus biografados, a fim de não correr o risco de atropelar o filme com uma série de eventos importantes e sem muita contextualização. Além disso, tem-se evitado a representação muito exagerada e que apenas imite os traços da pessoa real para que a composição do personagem não pareça acima do tom.

Pois na contramão dessa tendência, Esmir Filho lança agora Homem com H, retrato amplo e sem amarras da vida e carreira de Ney Matogrosso, passando justamente por esses caminhos narrativos e, mesmo assim, entregando um filme primoroso e digno da trajetória desse grande artista e contestador cultural.

Ney Matogrosso ganha uma incorporação muito bonita no jovem Jesuíta Barbosa, que já era um grande ator desde que protagonizou Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda. Aqui, ele e o diretor encaram uma tarefa dificílima: dar corpo a um indivíduo que se comunica pelo corpo, com seus trejeitos e postura nada convencionais para um mundo heteronormativo e até mesmo cuja voz (não fina, mas de afinação especial, como diz um professor de música no filme) é tão peculiar.

A voz não é um grande problema aqui porque os números musicais são dublados – não há como imitar uma voz daquela. O grande mérito do filme é conseguir um equilíbrio entre a imagem midiática de Ney Matogrosso e as nuances de sua personalidade – seja a maneira irreverente e atrevida que ele assume nas apresentações, seja o jovem imaturo que procura encontrar seu caminho profissional e pessoal, seja o homem de fibra que aprende a se impor no mercado fonográfico brasileiro.

O filme passa pela infância e juventude de Ney, no Rio de Janeiro dos anos 1940 e 1950, e chega até os dias atuais – o próprio cantor acompanhou de perto a realização do filme. Filho de pai militar (vivido por Rômulo Braga) e uma mãe amorosa (Hermila Guedes), o jovem precisa lidar com uma educação rígida e o embate direto com a figura paterna castradora que não aceita as escolhas de vida do filho, com sua sexualidade aflorada e sua inclinação para a arte.

Nem mesmo a chegada do Governo Militar – que até mesmo o pai dele vai recriminar em certo momento da trama – vai ser capaz de tirar o jovem, agora vivendo em Brasília, do caminho da música, sua verdadeira vocação. As canções que foram imortalizadas na voz e performance de Ney encaminham toda a narrativa do filme, sem parecer uma lista de hits de Matogrosso.

Ator-cantor

Em certo momento da trama, ainda na juventude, Ney é impelido a cantar, já que sua voz apresenta uma afinação diferente, ao que ele responde: “Eu não sou cantor, eu sou ator”. Estava posta ali a vontade de performar e de fazer do palco sua casa, mas veremos que é na música que Ney Matogrosso encontrou uma forma de dar vazão à arte da interpretação que é também uma forma de atuar.

Quando é convidado a integrar o grupo Secos & Molhados, junto com João Ricardo (Mauro Soares) e Gérson Conrad (Jeff Lyrio), ele pode mostrar todo seu talento e já aparecem ali os trejeitos afeminados e a indumentária e maquiagem exóticas e espalhafatosas com que ele passará a ser conhecido, mesmo depois de abandonar o grupo – e mesmo com o preconceito da sociedade brasileira.

Mas a partir daí sua imagem já estava consolidada, não apenas pelo sucesso da banda, quanto pela icônica interpretação de Sangue Latino e Rosa de Hiroshima. Seguindo carreira solo a partir de meados dos anos 1970, as intepretações de sucesso somam-se na carreira dele: Poema, Pro Dia Nascer Feliz, Mal Necessário, O Tempo Não Para e mesmo o incomum forró Homem com H que dá título ao filme.

Esmir Filho conseguiu incorporar na trama as principais canções que fazem parte do repertório do cantor, mas consegue contextualizá-las ao momento em que ele estava vivendo e suas inquietações, sejam artísticas ou pessoais. Esse talvez seja o maior mérito do filme: não transformar uma carreira tão rica em meras pílulas de momentos que precisam ser sublinhados para o espectador.

Amores e dores

A carreira de Ney está entrelaçada pela vida pessoal e pelos conflitos íntimos que ele enfrentou na sua relação com os outros. Primeiro há o embate com o pai, e isso ganha importância no filme porque não é um mero adendo de sua formação familiar. Na trama, vemos como a intransigência paterna foi cedendo lugar ao amor e ao carinho que ele sempre nutriu pelo garoto, apesar dos estranhamentos.

Mas é nas relações amorosas e sexuais que o filme abre outra brecha para demarcar a personalidade singular de Ney Matogrosso: sua liberdade enquanto indivíduo passa também pelo contato com as pessoas que ele amou e com quem transou ao longo da vida. É, de fato, uma maneira muito livre e desgarrada de lidar com o desejo e o tesão – por homens e mulheres – que ele nutriu ao longo da vida e que está explícito também na suas músicas e na forma de se mostrar ao público.

E claro, sua relação e encontro com Cazuza (vivido aqui por Julio Reis) ganha a intensidade necessária no filme, fora a parceria musical que eles estabeleceram, marcante para a carreira de ambos. Talvez o que poucos sabem é do relacionamento de 13 anos que Ney manteve com o médico Marco de Maria (interpretado por Bruno Montaleone) nesse mesmo período, inclusive dividindo o namorado casualmente com Cazuza, sempre muito ciumento e já um rapaz um tanto rebelde.

Tal amor louco e livre vai ser barrado pela epidemia de Aids/HIV que assolou o mundo a partir da década de 1980, principalmente entre a comunidade queer. O caso de Cazuza é bastante emblemático no contexto brasileiro, mas Marco também foi infectado, enquanto Ney passa incólume pelo vírus, não sem sofrer a perda dos queridos amigos e amantes e ver toda uma classe padecendo de pesar e luto. O filme faz um retrato muito respeitoso e melancólico deste momento.

Com uma vida marcada por amores e dores, a trajetória de Ney Matogrosso talvez tenha demorado para ganhar as telas do cinema, mas recebeu um tratamento à altura do talento e da importância do cantor para a cultura nacional. Jesuíta Barbosa e Esmir Filho passaram pela difícil prova e oferecem ao público uma das melhores cinebiografias musicais dos últimos anos no Brasil.

Homem com H (Idem, Brasil, 2025)
Direção: Esmir Filho
Roteiro: Esmir Filho

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 04/05/2025)

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