Ingmar Bergman e o silêncio

A
descrença é uma das marcas mais fortes da filmografia do sueco Ingmar Bergman.
Seja ela religiosa (um de seus grandes temas) ou no próximo, apesar das
esperanças e busca constante por respostas. Sua Trilogia do Silêncio forma um
belo estudo de vidas marcadas pela esperança de um dia se completarem no outro,
em Deus, na família, no amor. Mas em Bergman, como sabemos, dói muito essa
busca e nem sempre se alcança.
Através de um
Espelho

(Såsom i en Spegel, Suécia, 1961)

Ponto
de partida da trilogia, Através de Um
Espelho
parece ser das obras-primas de Bergman a menos festejada. Pai (Gunnar
Björnstrand) se reúne com filho (Lars
Passgård), filha (Harriet Andersson) e o marido desta (Max von Sydow), e
a aparente sintonia do grupo, marcada pela cena do banho de mar no início, vai
se corroendo à medida que os distanciamentos entre eles se tornam mais evidentes.
Num filme em que a representação de Deus é uma aranha monstruosa, vista pela
personagem de Andersson tomada de esquizofrenia, tem-se aí mais uma vez a
crença religiosa como esperança infrutífera de salvação, tema tão caro ao
cineasta sueco. 
É
o silêncio de Deus, mas há também o silêncio entre o pai distante e o filho
mais jovem e carente de atenção; o desgaste de um casamento fadado à dor,
apesar da paixão que ainda resiste ali, representada principalmente pela
expressão cansada, mas de doação total de Max von Sydow; e o tempo a corroer
tudo isso. Eis aqui mais um estudo psicológico de uma família marcada pelo
distanciamento, seja por culpa da doença, seja pela impossibilidade humana de
enfrentar seus medos. Mas o que seria a afirmação do pessimismo total, ganha
uma centelha rara de esperança na última cena, quando o pai fala abertamente
com o filho sobre o amor terreno, sendo esse o verdadeiro amor. Taí um bom
começo: fale com ele.
Luz de Inverno (Nattvardsgästerna,
Suécia, 1963)
Bergman
sempre teve uma bronca com os preceitos religiosos, muito por conta da educação rígida imposta pelo pai, pastor luterano. Em Luz de Inverno ele expurga esses anseios justamente na figura de um pastor,
vivido por Gunnar Björnstrand, já descrente e em crise de fé, mas que continua
ali, pregando a palavra bíblica com certa mecanização. De fato, toda a cena da
missa celebrada no início do filme é mostrada como algo desinteressante, arrastada,
sem paixão, o que justifica os poucos que ainda a frequentam. Entre eles, Märta
(Ingrid Thulin), a professora apaixonada pelo pastor, e o casal Persson (Gunnel
Lindblom e Max von Sydow).
O
grande conflito do pastor é não saber mais lidar com as responsabilidades de
líder e conselheiro espiritual que seu ofício exige. Além das investidas e
insistências de Märta, não sabe como ajudar o Sr. Persson que leu nos jornais
que a China logo pode desenvolver a bomba atômica e causar mais um conflito
mundial; o homem cai em depressão e passa a alimentar desejos suicidas. Preso em sua própria
descrença e incapacidade de ajudar os outros a desanuviar seus conflitos, o pastor se perde cada vez mais na sua fraqueza e desamor, principalmente depois da
morte de sua querida esposa. Björnstrand vacila o tempo todo com o olhar (numa
cena emblemática, olha para o altar da igreja e diz: “Que imagem ridícula”) e sua atuação
é pura desolação, assim como Thulin se doa a essa mulher que crê e sofre,
fervorosamente, com amor pelo pastor. No fim, Bergman ainda faz uma analogia
genial entre a Paixão de Cristo, cuja dor é menos física e mais de ordem
psicológica pela sensação de ter sido abandonado por todos (Pai e discípulos),
e a própria condição de solitude do pastor. Mas o fardo aqui promete ser eterno.
O Silêncio (Tystnaden,
Suécia, 1963)

O Silêncio parece ser o
filme mais antonioniano de Bergman (data dessa mesma época a produção da
Trilogia da Incomunicabilidade, concebida pelo diretor italiano), ou pelo menos
é o que se sente na primeira metade do filme em que duas irmãs (Ingrid Thulin e
Gunnel Lindblom), em viagem de volta à Suécia natal, pernoitam num hotel de uma
cidade desconhecida por conta da doença repentina que acomete uma delas. Num país
de língua desconhecida e sem muito que fazer, o clima geral é de paradeiro,
quase mistério, como demonstra as andanças do filho de uma delas pelo hotel, ganhando
ares de estranheza, até pelo encontro com uma trupe de anões circenses
espanhóis hospedados no lugar.
Mas
as dificuldades de entendimento logo se destacam na relação conflituosa entre
as irmãs, pontuadas por suas personalidades conflitantes; uma é controladora e
depressiva enquanto a outra se revela mais despojada, esbanjando sensualidade à
procura de relacionamentos casuais na cidade. O filme antecipa de certa forma Persona (no falatório e confissões entre
as personagens) e Gritos e Sussurros (na
eminência da morte de uma delas em contraponto à dificuldade – e falta de
vontade – em socorrer da outra). O cineasta sueco transforma o que inicialmente
era calmaria, em ebulição emocional, desfilando seu já marcante pessimismo ao
abordar relações familiares. Nesse casso, não parece haver conforto nos mais
próximos, e sim no desconhecido, representado pelo velho atendente do hotel. O
silêncio permanece.

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