Lutando contra a decadência*
Poucos são os atores mirins famosos em sua época que conseguiram manter uma carreira longeva e promissora. Judy Garland, a eterna Dorothy de O Mágico de Oz (1939), clássico absoluto de Victor Fleming, foi uma das primeiras crianças a garantir esse espaço no star-system da indústria hollywoodiana, marcando a cultura norte-americana e mundial, especialmente com sua voz.
A vida adulta de Garland, por sua vez, é o foco de interesse de Judy – Muito Além do Arco Íris, filme de Rupert Goold que encontra esta mulher tentando retornar ao estrelato no final dos anos 1960. Vivida com afinco por Renée Zellweger, auxiliada por uma caracterização física impecável, a trama nos revela uma mulher já desgastada pela vida, tentando curar o vício pela bebida e ainda recuperar a guarda dos filhos pequenos que viviam com o pai com quem ela já era divorciada.
Mas antes de ser vista como uma garota problema no ocaso de sua vida (Garland iria falecer em 1969, vítima de uma overdose acidental de medicamentos), o filme de Goold esforça-se para mostrar as diversas lutas que ela empreende na tentativa de se manter de pé com seu trabalho, ancorada em seu talento, apesar dos fantasmas e percalços que rondam a sua rotina.
Depois do sucesso nas telonas – ela teria ainda outro holofote no cinema ao estrelar a versão de 1959 de Nasce uma Estrela, dirigida por George Cukor (o mesmo papel que Lady Gaga fez recentemente na refilmagem da história clássica) –, Garland se apresentava em casas de show cantando e performando números musicais. Em 1968, depois de uma forte crise, ela volta aos palcos e começa uma nova turnê em Londres, que será o foco do filme.
Apesar de dar conta da vida da atriz e cantora, Judy é menos uma cinebiografia clássica que tenta passar a limpo os principais momentos de sua carreira e mais um retrato pontual sobre os anos finais de Garland. Funciona como uma homenagem a um ícone cultural que morreu cedo (tinha apenas 47 anos) e esteve desde sempre atrelada ao glamouroso e brutal mundo midiático.
Dor e compaixão
É certo que tal trajetória é marcada por sofrimento, melancolia, ostracismo e descrédito por parte do público. São notórias as crises de ansiedade de Garland e mesmo a desistência em última hora de suas apresentações. O público também não tinha mais a mesma paciência e doçura para com a garotinha sonhadora de outrora, mesmo que ela ainda angariasse certo respeito da plateia (e uma boa base de fãs – no filme, conhecemos o casal Dan e Stan, espectadores de todos os shows possíveis da estrela).
Na corda bamba entre o renovar da carreira e a decadência, o filme mostra como Garland flertou com essas duas possibilidades no fim da vida e o quanto havia ainda de energia e vontade de seguir trabalhando, apesar dos percalços.
O diretor lança aqui um olhar mesmo de devoção a ela, com certa dose de comiseração, como se o filme pretendesse redimi-la diante das arbitrariedades a que foi imposta e que construiu para si mesmo. Enxergamos a via-crucis de uma mulher que teve de se adaptar à vida de estrelato e toda a sorte de consequências (boas e ruins) que isso acarreta.
Goold faz uso de flashbacks para mostrar as agruras da infância da garota, pontuada pelo assédio moral vivenciado na rotina de trabalho – o estrelato cobra seu preço, e mesmo sendo criança ela não saiu incólume disso: tinha uma jornada de trabalho extensa, horas contadas de lazer e descanso e só podia sair sob a mira de sua assistente e agente pessoal; como estava o tempo todo na mira da mídia, precisava manter sempre boa aparência e nunca engordar – a garota era privada de comer para não romper a dieta, o que lhe acarretou problemas de alimentação pelo resto da vida.
Nesses momentos, o filme até que tenta conferir certo ar de rebeldia à garota – quando ela comete pequenas indisciplinas e desobedece ordens, sendo duramente repreendida depois. Esses são os momentos mais vibrantes do filme, que tentam dar conta da mulher e artista neurótica que Judy Garland se tornou.
Paralelos
Um dos grandes chamarizes de Judy é a interpretação hipnótica de Renée Zellweger. Fora os flashbacks, todo o filme se concentra na composição e recriação fidedigna que ela faz de Garland. O mais curioso é notar como a própria carreira da atriz estava em baixa nos últimos anos, sendo revigorada agora nesse papel.
Zellweger vem angariando todos os prêmios possíveis na temporada e é franca favorita a levar o Oscar no próximo dia 9 de fevereiro (se isto acontecer, será sua segunda estatueta, depois da vitória de atriz coadjuvante por Cold Mountain (2003), de Anthony Minghella.
Seguindo essa mesma cartilha de comiseração criada em torno da personagem, a interpretação de Zellweger esforça-se por compor um retrato de uma mulher forte, mas ao mesmo tempo combalida pelas lutas todas que enfrentava. Ela incorpora os trejeitos, a maneira doce de falar, mas também uma tristeza e um pesar que lhe pareciam inerentes, além de um jeito todo aéreo de se portar, como se vivesse constantemente entorpecida. É uma atuação que se mantém sempre no mesmo tom, segura dessa representação de uma mulher que luta contra as oposições da vida.
Judy – Muito Além do Arco-Íris tem esse lado piegas, essa motivação que tenta dar dignidade à personagem, mas nunca lhe privar das agruras. É claro que existe o momento apoteótico quando o filme e as pessoas que lhe cercam parecem querer lhe dar um último afago – é fácil reconhecer porque envolve a mítica canção Over the Rainbow. Não há gesto mais digno que este.
Judy – Muito Além do Arco-Íris (Judy, Reino Unido, 2019)
Direção: Rupert Goold
Roteiro: Tom Edge
*Publicado originalmente no Jornal A Tarde (edição de 01/02/2019)