Lenny sem Luvas

Fúria nos ringues

Em dada cena de luta, o treinador de Lenny fala para ele: “Eu não sei o que você está fazendo porque não é boxe, mas continue fazendo isso porque ele está perdido”. Lenny está buscando a revanche contra um antigo adversário e suas táticas não são das mais justas. Isso explica, talvez, porque Lenny McLean nunca se tornou um grande lutador de boxe tipo classe A ou viveu a fama dos grandes nomes do esporte.

Isso mostra também como esse personagem parecia fadado a trafegar por um circuito independente e mesmo rasteiro – para não dizer ilegal – de lutas armadas, negociadas escusamente em ringues clandestinos e pubs ingleses de baixa categoria. Mas era ali onde aconteciam as lutas sangrentas que faziam o tipo irascível do boxeador, ele que se dava melhor lutando de mãos nuas.

Lenny sem Luvas é a cinebiografia desse lutador inglês que, nascido nos subúrbios londrinos, sempre esteve ligado a um tipo de combate mais underground, longe do glamour dos grandes ringues e competições. Não era nem mesmo um lutador de boxe registrado como tal, considerado uma espécie de lutador peso-pesado não oficial, mas que entre os anos 1970 e 1980 obteve certa reputação no Reino Unido.

Em 1998, antes de morrer, ele viria a interpretar um papel pequeno no longa-metragem Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, comédia de gangsters dirigida por Guy Richie. Vale dizer que Lenny também estava metido em negócios escusos e com criminosos do submundo londrino. Mas essas duas facetas não se mostram em Lenny sem Luvas, mais interessado em revelar a ascensão do lutador e as trágicas passagens de sua vida.

O filme já está disponível nas seguintes plataformas de streaming: Now, Claro Vídeo, Vivo Play, Apple TV, iTunes, YouTube Filmes e Google Play.

Trauma familiar

O longa dirigido pelo diretor Ron Scalpello vai destacar os conflitos, internos e externos, que Lenny teve de superar para ser reconhecido como esse lutador difícil de derrubar, além de destacar seu temperamento complexo.

O filme consegue construir bem a dualidade desse personagem dado a surtos de violência e brutalidade, dentro e fora dos ringues, mas que ao mesmo tempo sabe ser também carinhoso e amoroso com as pessoas ao redor (ou com algumas delas) – as pessoas da vizinhança, por exemplo, adultos e crianças, parecem gostar dele e ele mantém uma rede de amizades fiel no bairro.

Lenny sem Luvas, no entanto, não consegue se desvencilhar de um tratamento um tanto chapa branca em relação a esse personagem, quando não simplista na forma como os fantasmas do passado incidem sobre a vida adulta dele. Para isso, o filme explora o título de “The Guv’nor” (algo como “o patrão) com o qual ele seria conhecido futuramente.

Quando criança, seu padrasto maltratava tanto ele quanto o irmão, física e psicologicamente, e ali mesmo ele ouvia o homem dizer que ele era “o patrão” da casa, quem mandava naquele espaço e a quem os garotos deviam obediência. Lenny irá guardar esse trauma para si e em toda luta – ou todo o momento em que ele sentir a necessidade de se afirmar perante as pessoas, provar sua força e superação – ele irá se lembrar das palavras do padrasto.

De qualquer forma, o filme abusa um tanto desse gatilho psicológico e parece não conseguir expandir os conflitos do personagem para além desse sentimento de autoprovação com o qual ele vai se confrontar para o resto da vida e em todos os momentos e lutas decisivas.

Interpretado pelo ator Josh Helman, Lenny se mostra esse brutamontes com cara de mal, tentando seguir sua vocação na luta, muito embora usando artifícios pouco usuais para tal. O ator parece mimetizar os trejeitos duros e grosseiros de Lenny, as caras e bocas do lutador real, o que acaba chamando muita atenção para suas caretas, como se estivesse a todo instante com expressão de assustado.

Vida adulta

Os traumas da infância perseguem Lenny enquanto ele busca seguir uma vida adulta mais equilibrada – tudo que sua rotina não é. Desde o início sua esposa Valerie (vivida por Chanel Cresswell) está do seu lado, muito embora os conflitos entre o casal não demorem a aparecer, especialmente por conta da propensão ao alcoolismo que ele também enfrenta.

Ele ainda vai criar um embate trágico com o seu primo Carrots (Charley Palmer Rothwell), inicialmente a pessoa que o agenciava e cuidava de negociar suas lutas; eles acabam se enfrentando numa briga por motivos estúpidos, mas com resultados devastadores para ambos. Com a própria esposa, ele fica, várias vezes, a ponto de terminar o relacionamento.

O filme sugere que isso seja consequência direta da frágil formação familiar desde a tenra idade, algo que se reflete na (tentativa de) constituição de uma família na fase adulta. Lenny só quer lutar, extravasar suas dores e cicatrizes nos ringues, mas acaba ferindo aqueles que estão ao redor.

Em um momento mais tocante, já mais encaminhado na carreira como lutador, ele irá retornar ao bar da vizinha onde mora e encontra antigos amigos – entre eles o velho Leslie, vivido pelo grande ator Jonh Hurt, em um de seus últimos papeis no cinema, já que morreria pouco depois de lançado o filme. Lenny tenta reatar os laços com essas pessoas que, no fundo, compõem a sua família, a sua rede de amizades e apoio na sua trajetória torta, sem estrelato, mas que faz jus à sua fúria nos ringues.

Lenny sem Luvas (My Name is Lenny, EUA, 2017)
Direção: Ron Scalpello
Roteiro: Paul Van Carter e Martin Askew

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 02/08/2020)

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