Mães Paralelas

Os sentidos políticos da maternidade*

Com seu longa anterior, Dor e Glória, Pedro Almodóvar parecia ter feito um filme de despedida, uma revisão de sua própria vida ao envelhecer através do personagem de Antonio Banderas, um cineasta em crise. O filme tinha um tom autobiográfico e seria uma interessante forma de arrematar uma obra extensa e repleta de grandes filmes.

Mas eis que seu novo trabalho, Mães Paralelas, resgata aquilo que ele sempre fez de melhor: o melodrama familiar feminino, centrado na ideia da maternidade e de seus dilemas sentimentais. O filme abriu o Festival de Veneza ano passado e chega agora aos cinemas antes de entrar no catálogo da Netflix no próximo dia 18.

O cineasta espanhol de 72 anos é daqueles diretores que não precisam mais provar nada a ninguém, dado o conjunto magistral de sua obra, seu estilo efusivo e colorido e as marcas autorais que ele construiu ao longo de uma frutífera carreira. Depois de sua fase mais madura (com Carne Trêmula, Tudo Sobre Minha Mãe e Fale com Ela), parece que cada novo filme de Almodóvar é um retorno a suas origens, a suas preocupações formais e a continuidade de um percurso autoral só seu.

No caso de Mães Paralelas, se reconhece de cara o visual arrojado e a temática feminina a partir da história de duas grávidas que se conhecem na maternidade e dão à luz no mesmo dia, iniciando assim uma amizade longeva. O cineasta acrescenta ao filme um toque político, de modo mais frontal, algo que poucas vezes fez em seus trabalhos.

Penélope Cruz já havia se firmado como a musa do cineasta espanhol desde alguns filmes anteriores. Aqui ela vive Janis, uma mulher independente, fotógrafa de profissão, que engravida de um homem casado, mas resolve mesmo assim ter a filha e criá-la sozinha. Ao conhecer a jovem Ana (Milena Smit), também uma futura mãe solteira, logo cria com ela um vínculo que irá mudar a vida de ambas.

Mãe solo

Se a ideia de maternidade sempre rondou o cinema de Almodóvar – as mães sofridas que carregam as responsabilidades (e por vezes a culpa) pelo destino de suas crias –, em Mães Paralelas o tema aparece quase como definidor dessas personagens, uma vez que a maternidade passa a ser a razão de suas vidas, ainda que por caminhos distintos.

Janis possui uma posição muito mais assertiva sobre sua condição de mãe solteira, uma escolha pessoal e determinada, também em acordo com o pai da criança (vivido por Israel Elejalde), enquanto Ana carrega um trauma por conta dessa gravidez indesejada e violenta.

Ambas possuem uma herança familiar que forma a sua personalidade; a ascendência materna de Janis é toda formada por mulheres fortes e que, em sua maioria, também foram mães solteiras. Já a mãe de Ana (interpretada por Aitana Sánchez-Gijón), tem um passado hippie e também teve de criar a filha muito jovem, oprimida pela família do marido que não a aceitava. Mesmo agora, já uma mulher de meia-idade, ela persegue o sonho de ser uma atriz de teatro, algo que não pode fazer na juventude.

Por outro lado, a imaturidade da jovem Ana e a opressão paterna pesam sobre ela, mas encontra na sua nova condição de mãe uma força para seguir vivendo, até que uma desgraça recaia sobre sua frágil filha.

Como de costume no cinema de Almodóvar, não demora para surgirem as surpresas e os mistérios que envolvem os tropeços e as peças do destino na vida dessas duas mulheres, o que coloca em cheque a sua relação e a própria natureza da maternidade – não cabe aqui entregar muitos detalhes da trama, apenas dizer que o cineasta brinca com alguns clichês do melodrama nesse aspecto.

Ainda assim, estamos falando de um mestre do gênero; portanto as reviravoltas do filme são todas bem amarradas na história, muito bem defendidas por suas atrizes e embaladas pela fluidez com que correm os filmes do diretor espanhol. Almodóvar, acima de tudo, é um cineasta que filma com segurança e domínio total de encenação. Ele está na sua zona de conforto e faz disso um deleite para o espectador acostumado à sua obra.

Caminhos políticos

“Todo filme é político”, já disse Almodóvar tempos atrás. Isso porque a dimensão política está contida na própria condição humana na medida em que precisamos lidar e negociar o tempo com as circunstâncias sociais e na relação uns com os outros. Existe, portanto, uma forte dimensão política ao tratar de temas como gênero e sexualidade da forma como aparecem nos filmes de Almodóvar.

Seu cinema, portanto, sempre teve uma veia política muito forte. Mas no caso de Mães Paralelas essa dimensão ganha historicidade e ainda se conecta diretamente com o tema central do filme. A história começa com Janis buscando a ajuda de um antropólogo (que viria a ser o pai de sua filha) para que o Estado espanhol investigue e escave um terreno próximo ao povoado de sua família onde há uma vala comum e muitos cadáveres enterrados, um deles possivelmente de seu avô.

Com isso, o filme insere frontalmente na trama o passado histórico do país envolvendo a Guerra Civil Espanhola e os desmandos cruéis do franquismo que soterrou (literalmente) diversas pessoas que ousaram se contrapor ao regime de caráter fascista. Muitos homens morreram ou desapareceram nesse processo, o que gerou uma legião de mães órfãs de filhos e esposas viúvas e desconsoladas.

Poucas vezes um apontamento político-histórico assim foi posto de forma tão crua e importante para a trama de um filme do cineasta, muito embora ele já tenha denunciado a ditadura franquista antes. Em Carne Trêmula, uma mulher (coincidentemente interpretada por Penélope Cruz) entra em trabalho de parto no meio da noite – uma noite de janeiro de 1970 quando havia toque de recolher e um estado de exceção instaurado na Espanha franquista.

É quase como se o diretor retornasse a esse filme e revirasse a história do seu país – de antes e de agora, uma vez que os personagens citam a dificuldade atual de investigar, no âmbito político e judicial, tais mazelas que marcam a História da Espanha. Almodóvar faz os foros político e íntimo se apresentarem indissociáveis e interdependentes.

Aliada às discussões sobre os desafios da maternidade, o diretor insere um dado histórico para reforçar a condição materna e a situação de tantas famílias que se foram despedaçadas e tiveram que se forjar pela força das mulheres. A partir disso, o filme lança luz sobre a necessidade de sempre elucidar a verdade – seja ela histórica ou pessoal – sobre as nossas origens e ancestralidade.

Almodóvar se prepara agora para fazer seu primeiro longa em língua inglesa, protagonizado por Cate Blanchett – depois de ter feito recentemente o curta A Voz Humana, com Tilda Swinton, também em inglês. Certamente, o cineasta está mais ativo do que nunca.

Mães Paralelas (Madres Paralelas, Espanha, 2021)
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 04/02/2022)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Arquivos