À beira do sertão*
Um homem, uma mulher e uma criança de colo percorrem a paisagem árida do sertão nordestino em busca de pouso e dignidade. Parece uma história saída dos livros de Graciliano Ramos, mote recorrente nos tempos de seca braba. Mas esse é o ponto de partida (e também de chegada) de Mais Pesado é o Céu, novo filme do cineasta cearense Petrus Cariry.
Os três personagens em questão nem sequer compartilham laços sanguíneos. Teresa (Ana Luiza Rios) encontrou o bebê abandonado dentro de um pequeno barco às margens de um rio seco. Pegou a criança sem pensar no que fazer, assim como esbarrou com Antônio (Mateus Nachtergaele) em seguida, que logo se afeiçoou aos dois. Ambos estavam de retorno à região onde viveram na infância, mas só encontraram desalento.
A partir daí, eles passam a caminhar juntos, em busca de um lugar onde possam se estabelecer e recomeçar a vida, formando assim uma família improvável e errática. Mais Pesado que o Céu começa com a formação deste núcleo familiar que apontaria para um lugar de esperança e apoio mútuo, porém a dureza encontrada pelo caminho vai colocá-los à prova.
“A gente costuma usar a estrada muito como metáfora; a estrada que liga dois pontos, um lugar a outro. Nesse caso, os personagens ficam sempre à margem da estrada, eles nunca estão na estrada em si. E estão sujeitos a todo tipo de violência e humilhação”, afirmou o diretor em coletiva de imprensa virtual.
Esta posição reforça a ideia de que Mais Pesado é o Céu se configura como um quase road movie, mais porque a estrada (road) está ali presente e menos como um caminho por onde eles trafegam e cruzam na esperança de chegar a um destino. Antônio e Teresa não possuem perspectiva nenhuma de vida e acabam encontrando pousada em uma casa abandonada que transformam em um lar provisório (mas até quando?). Querem sair dali, mas como? A incapacidade de responder a essas perguntas e demandas faz com que eles vão ficando.
Acabam encontrando apoio em Fátima (Sílvia Buarque), mulher carioca que se casou e se mudou para aquele sertão há muito tempo, abandonada posteriormente pelo marido. Solitária, ela parece compreender o isolamento e as muitas faltas que estão estampadas nos rostos sofridos de Antônio e Teresa.
Um não-lugar
Logo no início do filme, Antônio pede carona a um caminhoneiro para levá-lo até determinada localidade, ao que o motorista responde, então, que se trata de “lugar nenhum”. Tanto ele como Teresa nasceram na cidade de Jaguaribara, que há algum tempo foi submersa para dar lugar à construção de uma barragem – a cidade, de fato, existiu e deu lugar à barragem de Castanhão.
Com isso, Cariry cria um sertão desolador que parece um não-lugar, um ambiente de ausências e em que os personagens buscam se firmar, mas encaram as precariedades e violências do mundo, até eles próprios reagirem com violência diante das opressões sofridas.
“O sertão que está posto no filme é uma grande alegoria do próprio Brasil. É um sertão de certa forma inventado. A gente viveu um momento de ruínas nesse país, com um governo extremamente problemático, autoritário, fascista. Logo depois teve a crise da Covid, um momento de muita desesperança. Ninguém sabia qual era o futuro, não conseguíamos ver um horizonte. Então o filme faz uma alegoria muito grande em relação a isso, e aquele sertão é toda uma construção nesse sentido”, explicou o diretor.
Ele também chamou a atenção para o fato da fotografia do filme ser muito ensolarada, do filme ser muito colorido. E isso é um contraste curioso que se coloca diante dos sofrimentos que os protagonistas precisam esconder. O diretor conta que, no início do processo de escrita do roteiro, ele queria fazer um filme mais alegre e solar, mas o resultado acabou sendo mais duro.
“Acredito que isso aconteceu por influência de tudo que estava acontecendo com o país nesses últimos anos. E a gente vive constantemente esse ciclo de construir-destruir-reconstruir. Esperança e desesperança. O brasileiro vive sempre nessa balança, mas de alguma forma não desiste nunca”, pontuou Cariry.
Bicho homem
No desenho dos personagens, há também uma certa inversão de papeis sociais na medida em que Teresa passa a sair de casa em busca de trabalho – primeiro no pequeno mercado que há ali perto, depois na beira da estrada oferecendo outros serviços – enquanto Antônio passa mais tempo em casa cuidando do bebê. Ainda assim, a situação deles não é das melhores – e ela ainda sofre o peso de ser um corpo feminino em um universo tão misógino e opressor.
Com isso, o filme investe em um crescendo de violências e humilhações que os colocam à prova. Para além do próprio ambiente árido e pouco acolhedor, há o elemento humano que reforça as inconstâncias dos sujeitos. Há os que conseguem acolher dentro das suas possibilidades e há aqueles que, individualistas, servindo ao poder do capital ou mesmo pela natureza vilanesca, oprimem e esmagam o próximo.
“O que a gente fez com a gente?”. Esta é um fala de Antônio que parece ser central para o entendimento de onde a narrativa quer chegar – e este ponto final tem doses cruéis de amargura. Isso porque a trama de Mais Pesado é o Céu vai fechando o cerco em torno dos seus personagens, e a vontade de vencer esbarra nas próprias intransigências do ambiente ao redor.
No final das contas, Teresa e Antônio são levados ao limite da sua própria capacidade de suportar o peso da mortificação (o peso do céu?). A ideia de família, que se desenhou no início do filme, pode até ter resistido com eles por algum tempo, mas é preciso muito mais que boa vontade e bom coração para resistir às exigências do mundo.
Mais Pesado é o Céu (Brasil, 2023)
Direção: Petrus Cariry
Roteiro: Petrus Cariry, Rosemberg Cariry e Firmino Holanda
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 18/08/2024)