Medida Provisória / Entrevista com Lázaro Ramos e Aldri Anunciação

Feridas expostas do racismo

Em um futuro próximo de um Brasil distópico, o governo nacional revolve decretar que todos os cidadãos negros (tratados no filme, ironicamente, como pessoas de “melanina acentuada”) devem retornar para o continente africano como forma de reparação social da qual eles tanto falam. Nem se discute a distorção cometida em relação ao significado de “reparação”, isso porque as pessoas negras passam a ser capturadas à força nas ruas pela polícia.

É ao redor dessa premissa mirabolante, mas de impacto, que gira Medida Provisória, longa-metragem dirigido por Lázaro Ramos que estreia esta semana nos cinemas brasileiros. Trata-se do primeiro longa de ficção comandado por Lázaro, adaptado da peça de teatro Namíbia, Não!, escrita por Aldri Anunciação, que já vem fazendo sucesso desde o seu lançamento em 2011.

Agora, o texto ganha uma roupagem mais realista, apesar de manter a dimensão alegórica da história original. A trama pode ser passar num futuro próximo, mas as questões raciais que se colocam em pauta, de modo muito frontal, são mais atuais do que nunca.

“Algumas das coisas que são mostradas no filme aconteceram na vida real, muitos dos alertas que a gente queria trazer sobre as polarizações, as questões raciais, a luta antirracista, a formação da nossa identidade, as violências que são provocadas no nosso dia a dia, as nossas mortes, nossas lutas, tudo isso tornou-se realidade nesse filme”, pontua Lázaro que esteve em Salvador, junto com parte do elenco e equipe do filme, para divulgar o projeto.

No meio dessa inversão de diásporas forçadas está o casal Antonio (Alfred Enoch) e Capitu (Taís Araújo), ele advogado, ela médica cirurgiã. Ao lado de André (Seu Jorge), amigo jornalista que mora junto com eles, o trio busca enfrentar a nova medida provisória que logo provoca caos nas ruas.

Enquanto Antonio e André se refugiam dentro do apartamento – uma lei brasileira impede que a polícia invada o domicílio de qualquer pessoa sem autorização –, Capitu enfrenta a violência das capturas forçadas nas ruas e encontra ajuda em um movimento de resistência clandestino.

Entreter e refletir

Lázaro conta que chegou à direção do filme por acaso: “Eu cheguei a oferecer o filme para vários cineastas, mas eles tinham os seus próprios projetos e eu acabei assumindo a direção. Não era um plano de vida meu, mas depois eu entendi que uma visão de mundo que eu tinha sobre a maneira de contar histórias poderia ser útil aqui”, confidencia.

Uma dessas maneiras pensadas por Lázaro é a mistura de gêneros cinematográficos. O filme trafega pela comédia (a veia cômica de Seu Jorge salta aos olhos), em especial no primeiro terço de duração, passando pelo thriller policial e pelo melodrama. Há um claro intuito de ser um produto popular que se comunique com o público de modo amplo. No início do filme há até mesmo certa graça na maneira como os personagens lidam com as ideias equivocados que os brancos têm sobre a negritude no Brasil, principalmente aqueles donos de poderes institucionalizados (como a síndica vivida por Renata Sorrah ou a Ministra da Devolução, encarnada por Adriana Esteves).

Mas a partir do decreto da medida provisória e da onda de violência que isso gera, o filme passa a se concentrar com mais potência e intensidade no debate racial pensando no contexto brasileiro. A partir daí os debates se tornam mais sérios e expostos de modo frontal.

Sobre isso, Lázaro observa: “O filme tem o propósito de sensibilizar as pessoas. O começo como comédia, por exemplo, serve para a gente se identificar com aqueles personagens de forma rápida; quando a tragédia se apresenta, a gente já está envolvido com eles. Muitas histórias negras já começam com os pretos desumanizados e fica-se só no fetiche de ver aqueles corpos sofrendo”.

Com Medida Provisória, ele quis fazer diferente: “A estratégia desse filme, dentro do debate racial, é não apenas conscientizar o público, mas também sensibilizar. Será que a gente se mobiliza de fato sobre essas histórias ou é apenas um assunto que a gente discute, mas depois anestesia no dia a dia?”, questiona o diretor.

Negritude e brasilidade

Para dar vida ao protagonista Antonio, Lázaro convidou o jovem ator Alfred Enoch, filho de mãe carioca e pai inglês (o ator nasceu no Reino Unido, mas fala fluentemente o português, além de ter ficado conhecido por ter participado da série de filmes do Harry Potter).

“Lázaro apostou em mim, no meu talento, na minha brasilidade também. Eu quero sempre afirmar esse meu lado brasileiro, é importante para mim. O Lázaro viu uma entrevista que eu dei falando sobre isso e resolveu me dar esse presente, a oportunidade de protagonizar um filme brasileiro importante como esse”, afirma Enoch.

A ideia de nacionalidade está tão presente no filme quanto um pensamento comum sobre as questões da negritude. Sobre isso, Aldri Anunciação, um dos roteiristas e escritor da peça de teatro original, pontua: “Muita coisa do espetáculo foi acontecendo na realidade. O Eric Garner morre nos Estados Unidos, em 2014, repetindo “eu não consigo respirar”. Na peça, tem uma personagem que morre assim, dizendo “eu não consigo respirar, primo, com toda essa pressão”, e vai morrendo. A migração da peça para o filme importa todo esse lugar que parece algo visionário próprio do artista. Parece uma coisa mágica, mas não, é uma visão que o artista tem. A arte consegue ver além”.

Medida Provisória tenta enxergar esse além mirando no presente e nas feridas ainda abertas do racismo no Brasil. “Nós já vivemos numa distopia no Brasil de agora, por isso que a gente está precisando ser mais utópico”, ressalta Lázaro. “O filme estreia num ano eleitoral em que vamos fazer uma decisão política muito importante; e o filme tem também uma bandeira contra o fascismo, tá implícito no jeito que se fala do tema, e isso é também uma forma de ativar mais uma vez a luta antirracista”, conclui o cineasta.

Medida Provisória (Brasil, 2022)
Direção: Lázaro Ramos
Roteiro: Lusa Silvestre, Lázaro Ramos e Aldri Anunciação

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 14/04/2022)

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