A força política do amor*
Com mais de 30 anos de carreira, o franco-mauritano Abderrahmane Sissako, um dos cineastas mais importantes e reconhecidos do continente africano, está em Salvador como convidado da Mostra de Cinemas Africanos que segue até a próxima quarta-feira. Na programação, Sissako apresentou ao público seu mais recente trabalho, o longa-metragem Black Tea – O Aroma do Amor, cuja estreia mundial aconteceu no Festival de Berlim deste ano.
Sua vinda ao Brasil é um retorno, pois ele já esteve aqui antes, inclusive na Bahia, em 2007, no intuito de estreitar laços culturais. No ano seguinte, seu longa Bamako foi exibido na capital baiana, causando comoção no público e fazendo seu cinema ser mais conhecido no país.
“Evocar a exibição de Bamako aqui em 2008 é muito importante para mim, estou muito feliz de estar de volta”, afirmou o cineasta em conversa exclusiva com A Tarde na noite em que exibiu Black Tea pela primeira vez na capital baiana – para quem perdeu, o filme ainda passa mais uma vez na noite deste sábado.
“O cinema para mim, que sou um cineasta africano, tem um peso político muito grande. O papel do artista é de estar engajado na sociedade”, pontuou o diretor. Tanto em Bamako, como em outros filmes, como Timbuktu, de 2014 (também uma grande referência na sua filmografia, já que conquistou diversos prêmios e ampliou a visibilidade do realizador no mundo), sobre fundamentalismo religioso, a carga política evidencia-se de forma muito direta.
Talvez por isso Black Tea tenha sido recebido com certa estranheza e curiosidade por muitos espectadores, pois coloca o cinema de Sissako em outras caixinhas. Primeiro porque a trama se passa quase toda na China, na cidade de Guangzhou; depois, por se tratar de uma história de amor inter-racial, temas que não haviam aparecido em sua filmografia como aqui.
Deslocamento cultural
No longa, Aya (Nina Mélo) abandona o noivo no altar no dia do casamento para depois se mudar para a cidade chinesa em busca de oportunidades. Lá, ela conhece Cai (Chang Han), dono de uma casa de chás onde ela passa a trabalhar. Mais velho que ela, Cai vai lhe revelar um mundo novo de sensações e perspectivas de vida, e eles passam a viver uma aproximação amorosa.
A escolha de retratar a China no filme não surgiu por acaso. Sissako contou que a cidade de Guangzhou tem recebido nos últimos anos um grande contingente de pessoas africanas, imigrantes que foram trabalhar e refazer a vida. A Ásia tem se tornado um destino muito procurado pelos africanos no processo da diáspora contemporânea.
“Black Tea fala de um novo mundo que parece ter acabado de nascer para nós: a força da Ásia, da China, que se encontra com a força de outro continente que é a África, e a dinâmica que se cria entre esses dois espaços”.
No filme, o universo do trabalho é algo muito presente. Enquanto Aya passa a apreender mais sobre os diversos tipos de chás, ela também interage com outros trabalhadores, africanos ou locais, que constituem essa comunidade de gente que sustenta a base do mercado capitalista, os operários modernos. “O que eu queria mostrar mesmo era esse lado da imigração oriental, essa China com africanos falando chinês. É um mundo que existe de fato lá”, complementou.
Sissako defende também a necessidade de não reproduzir uma África de miserabilismo, comumente a que vemos na mídia. Da mesma forma, a China do filme, retratada com suas cores quentes, embala as possibilidades amorosas dos dois personagens, embora cada um deles possuam suas cicatrizes pessoais e lidam com os anseios de seus familiares – principalmente a partir da rejeição dos pais de Cai em relação a Aya.
Amor como política
O tom de melodrama permeia toda a projeção de Black Tea. O filme possui uma cadência romântica presente desde o início com uma trilha sonora melancólica e pontual que insiste em nos lembrar o tema da aproximação e do amor como algo que move e impulsiona os personagens. Este melodrama construído por Sissako tem muito mais de idealizado do que de efusivo e caloroso.
Isso porque os personagens vão ser atravessados por outras questões que o próprio diretor insere na trama: “Black Tea é um filme de amor, mas fala também de racismo. Aya é rejeitada pela família do namorado chinês. Por outro lado, o filho de Cai de um casamento anterior vai se contrapor ao racismo dos avós. Essa é uma história de encontro entre culturas diferentes e isso aponta para uma definição de humanidade. A humanidade é feita de encontros”, arrematou.
Assim, nesse deslocamento geográfico e cultural que o filme provoca, Black Tea toca em feridas que não podem ser escondidas diante do clima de romance. E com isso Sissako faz um filme muito mais incisivo sobre temas pertinentes do que aparenta em princípio. “Um filme político nem sempre se faz de forma combativa, visível. É a forma de ver o mundo que faz um filme ser político”, definiu o diretor.
Ao ser perguntado sobre a crescente demanda de acesso não só a sua obra, mas do conjunto de produções feitas no seu continente, Sissako reforçou a importância de se exibir e se falar mais sobre cinemas africanos:
“A arte é universal, então a visibilidade deve ser universal também. O mais importante é que o cinema africano seja visto na África primeiramente, e isso ainda é um problema. Mas o fato do cinema africano ser exibido aqui, principalmente em Salvador, esta cidade tão negra, é fundamental para que o cinema e a arte sejam um ponto de encontro entre Brasil e África. E um festival como esse é já um primeiro e grande passo para que isso aconteça”.
Black Tea – O Aroma do Amor (Black Tea, França/Mauritânia/ Taiwan/Luxemburgo, 2024)
Direção: Abderrahmane Sissako
Roteiro: Abderrahmane Sissako e Kessen Tall
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 21/09/2024)