Os cineastas malvadinhos e partidários do cinema de choque, tomados pela síndrome do enfant terrible, não param de se multiplicar. A georgiana Dea Kulumbegashvili parece ser a mais nova integrante do grupo de diretores que fazem filmes pesados e chocantes como se portassem no peito uma medalha pela coragem e determinação em denunciar a crueldade do mundo em seus filmes. No fundo, eles até revelam isso mesmo nas obras, mas se dedicam muito pouco a aprofundar as questões, causas e consequências daquilo que invocam nos filmes.
É assim com Abril, segundo longa-metragem da diretora, que segue os mesmos passos ou até mesmo amplia o tom de desconforto de seu primeiro trabalho, Beginning. Encontramos aqui os cacoetes mais batidos do “cinema de arte” (longos planos-sequência, abuso dos tempos mortos, câmera fixa e certa aposta na bizarria), misturados com essa vontade de abalar as sensibilidades do público com cenas “fortes”. É o tipo de abordagem crua cada vez mais chancelada pelos grandes festivais europeus, neste caso vindo com o Prêmio Especial do Júri conquistado no Festival de Veneza.
Na trama, Nina (Ia Sukhitashvili) é uma médica obstetra que trabalha no hospital de uma pequena cidade do interior da Geórgia realizando partos. Quando num desses procedimentos o bebê acaba morrendo após o nascimento, inicia-se uma investigação para saber o que houve de fato, e Nina passa a ser acusada de praticar abortos clandestinos em jovens pobres da comunidade ao redor.
Há um aspecto de frieza na abordagem do filme que torna a inquirição sobre esta mulher algo muito incerto e até mesmo vago (podemos lembrar de modos de encenação parecidos nos filmes da austríaca Jessica Hausner ou do mexicano Michel Franco, para citar exemplos mais recentes). Além de nunca entendermos as motivações e os anseios de Nina – mulher solitária, que nunca se casou –, ela também se lança a uma jornada de autodegradação e violência. Encontra-se com homens na beira da estrada, faz sexo com eles e, em alguns casos, sofre agressões físicas e psicológicas, embora não reaja a elas ou as refute. Sofre calada. Será por culpa que ela se submete a isso, como forma de punição pelos abortos que pratica? Mas se ela os faz por razões claras (em prol da saúde e do bem estar de jovens que não queriam engravidar, por motivos de estupro ou por não serem ainda casadas), por que estaria ela se culpando por isso?
Tais perguntas passam mais pela cabeça de um espectador atento do que necessariamente são evocadas no filme (não há intenções reais em discutir o contexto em que os possíveis abortos são realizados). O longa também supõe uma investigação sobre os atos ilícitos de Nina a nível institucional, mas não vemos isso ocorrer de fato na trama. Ela está mais interessada nos momentos de desconforto, nas cenas fortes (como o parto normal, filmado frontalmente na cena inicial) ou menos na bizarria – ao inserir uma figura humanoide feminina deformada que surge pontualmente em algumas cenas.
Mesmo diante das atrocidades mostradas, o próprio filme não parece se incomodar com elas; ele não reage à violência ou à injustiças, nada abala seu andamento, como se aqueles atos fossem banais ou normalizados. O efeito é de causar desconforto na audiência, mas ele provoca também um sentido de impassibilidade e desimportância que parecem tirar o peso das situações. Mais do que o filme em si, vai se tornando perceptível como os próprios personagens acabam assumindo também esse distanciamento sem implicação emocional nenhuma.
Abre-se a brecha para tratar da maternidade forçada nas áreas mais recônditas de um país cheio de desigualdades, da condição da mulher sujeita à violência doméstica e marital, mas tudo está lá como dedo apontado e nunca como debate substancial. E são quase 3 horas de filme. Abril não está interessado em responder interrogações ou sugerir caminhos. Tudo bem, não é obrigado a isso. Mas também se mostra vazio ao apenas deixar correr o sadismo pela brutalidade humana que vitima mulheres.
Abril (April, Geórgia/Itália/França, 2024)
Direção: Dea Kulumbegashvili
Roteiro: Dea Kulumbegashvili